Na continuação da aula de Gerusa Leal do projeto Eu escritor, ela mostra como o escritor precisa sempre de um leitor atento, cúmplice, que faça parte do universo criado por ele, para só assim fazer da ficção não apenas letras em papel, mas algo que tenha vida e ultrapasse o sentido de narrativa. Amparada pelos pensamentos de Clarice Lispector e Machado de Assis, ela diz que “talvez o personagem mais importante numa narrativa possa ser, no fim das contas, o leitor”.

Por Gerusa Leal

Leitor cúmplice

Foto: reprodução internet

Dissemos, na coluna passada, que a mola mestra de toda e qualquer criação literária é a leitura. Ricardo Piglia, autor de Formas Breves, diz mais:

“A leitura é a arte de construir uma memória pessoal a partir de experiências e lembranças alheias.”

Pois é, a leitura é uma arte. Diz-se, na teoria e na técnica literária, que o narrador é o primeiro personagem criado numa narrativa de ficção, e o mais importante. E eu me pergunto: seria? Segundo Clarice Lispector, talvez o personagem mais importante numa narrativa possa ser, no fim das contas, o leitor:

“O personagem leitor é um personagem curioso, estranho. Ao mesmo tempo que inteiramente individual e com reações próprias, é tão terrivelmente ligado ao escritor que na verdade ele, o leitor, é o escritor.”

O que Clarice chama aqui de escritor, eu chamaria de narrador. Pois, de fato, o escritor é Clarice Lispector, casada com um diplomata, mãe de dois filhos, que trabalhava e pagava suas contas como qualquer um de nós. Não é com Clarice, pessoa física, escritora, que o leitor se liga, quando está lendo um texto dela, mas com o narrador, criado pela escritora para, das formas mais variadas possíveis, “narrar” seja lá como se queira classificar os seus textos.

Machado de Assis também tinha em alta conta a arte da leitura, a capacidade do leitor de exercê-la, convidando-o com frequência a fazer sua parte na construção da narrativa, ligado ao narrador. Às vezes faz isso de forma simples e direta, mencionando explicitamente o leitor, tratando-o por “você”. Às vezes confia tanto no talento e preparo do leitor para a tal arte, a da “leitura” – que não se restringe à decodificação dos caracteres impressos, mas exige de nós, leitores, também muito de atenção, de informação, de imaginação, de criatividade – que nos deixou textos como o capítulo LV da obra Quincas Borba – O velho diálogo de Adão e Eva:

“Brás Cubas . . . . . ?

Virgília . . . . .

Brás Cubas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . .

Virgília . . . . . . !

Brás Cubas . . . . . . . .

Virgília . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . .? . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . .  . . . . . . . . . . . . . . . . .

Brás Cubas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Virgília . . . . . . . . . . . . . .

Brás Cubas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . ! . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . ! . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . !

Virgília . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ?

Brás Cubas . . . . . . . . . . . . . . !

Virgília . . . . . . . . . . . . . . !”

Percebeu? Não? Então nos próximos dias consiga um exemplar de Memórias Póstumas de Brás Cubas – ou se quiser baixe aqui:

http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=2038 e leia ao menos dois ou três capítulos anteriores, para entender o contexto do “diálogo”. Ah, mas mesmo contextualizado o diálogo pode variar bastante na mente de cada leitor? Acho que Machado contava com isso. Essa a “arte” do leitor.

E se além da arte da leitura você sente lá seus impulsos para escrever, um ótimo exercício de criação de diálogo – inclusive largamente proposto em vários sites na internet – seria, atento ao título do capítulo, escrever seu próprio diálogo em substituição aos pontinhos no texto de Machado. Quer mais uma forcinha no exercício? Ouça a “interpretação” musical de Rafael Cortez para o capítulo de Machado, em http://www.radio.uol.com.br/#/letras-e-musicas/rafael-cortez/o-velho-dialogo-de-adao-e-eva—faixa-bonus/2603826

Vamos em frente.

2 thoughts on “A arte da leitura”
  1. Gosto muito, Gê. Texto claro, pensamento idem. É perfeita diferenciação entre escritor e narrador, entre leitor e personagem. Com certeza, o leitor é convidado a criar também. Sua capacidade de síntese, para explicar conceitos que podem ser complicados, é invejável. Parabéns, querida.

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