Crédito das fotos: Carlos Lima

Diz uma antiga frase que alguém só morre de verdade quando não é mais lembrado. O esquecimento dos outros, nesse caso, é o encerramento, a morte plena, daquele alguém. Ao entrarmos nas histórias da nova obra de Cícero Belmar, O livro das personagens esquecidas (Cepe Editora), temos a impressão que ele dá sobrevida aos personagens (pessoas?) que passaram por este mundo e já não são mais lembradas. Claro, estamos falando de ficção, mas o bom texto literário sempre deixa a pulga atrás da orelha sobre o quanto de realidade existe por trás das páginas. Ainda mais em se tratando de um escritor-jornalista, sobretudo repórter do cotidiano, função que o autor ocupou por muitos anos nos jornais do Recife.

O passado e a memória são trabalhados muito bem nos contos de Belmar. Como esquecer, por exemplo, uma união de 18 anos que hoje (no tempo do conto) não existe mais? Pincelando lembranças, momentos vividos, sons, paladares, cheiros, o autor nos apresenta recortes potentes, de forma singela, de vidas passadas, de personagens que ficaram em algum lugar do tempo, permanecendo apenas na imaginação de outros personagens.

A matéria-prima trabalhada na prosa de Belmar é sobre a ideia de um passado que vai sendo pouco a pouco apagado, tornando o presente (e consequentemente o futuro)  como algo sem referências. Constatação, por si só, muito triste. Nos 25 contos deste livro, os contextos e os protagonistas são bastante diferentes entre si. O assunto (ou a personagem) mais persistente, de fato, é o esquecimento. Apareça ele como um elemento trágico, um dado rotineiro ou uma necessidade para determinar como seguir em frente.

Ao falar da memória e do que ela oculta, Cícero Belmar também faz um retrato da complexidade do tempo. O passado, claro, ele nos diz em forma de ficção, é um ser mutante, recriado e distorcido constantemente. Cada lembrança age sobre esse elemento. O livro das personagens esquecidas, no entanto, também nos faz rever, como leitores, a atualidade, cientes de que o presente é prodigioso em esquecer (ou apagar) justamente o que é mais essencial: a memória real.

Os três primeiros contos são nada menos do que excelentes. “A ilha” é sobre a mulher entrando no Alzheimer, começando a vida náufraga, sem direção. É tudo tão sutil e envolvente nesse conto. “Miserere mei, Deus” é a vida de outra personagem remoída pela clausura da castidade, rezando para almas e divindades, através de um longínquo tempo corroído pelo remorso. Em “A mulher que viu a história” acompanhamos a testemunha de um crime histórico, forçada a esquecer o assassinato para poder sobreviver. “Conversando água”, observamos irmãos em desavença, porque um quer manter viva a memória do pai, homem que sabia encontrar água debaixo da terra com técnicas próprias e rudimentares, enquanto o outro irmão quer deixar o passado soterrado.

É um livro que por muitas vez os personagens se sentem obrigados a esquecer alguma coisa como forma de proteção para não serem jogados no limbo. “Ideias perigosas”, que se passa na época do regime militar,  várias pessoas também  preferiam o silêncio ao aniquilamento. Já no conto “Buracos na lataria” é a história da mulher que tem um bar dentro do trailer onde mora, fazendo daquele local o seu refúgio e o ganha pão, vivendo no tempo dela, apenas para si própria. “A profecia” nos apresenta um segredo que o marido esconde da esposa. “Flor” é a despedida de uma paixão que parecia nunca acabar, tamanha a força do amor entre os protagonistas.

Vamos entrando e sendo absorvidos nesse emaranhado de acontecimentos, a exemplo da personagem que volta a lembrar quem ela deixou de ser por conta do marido recentemente falecido, preferindo, no entanto, viver das ilusões de um casamento cheio de maus-tratos do que sofrer de amnésia. Ou o rapaz que tatua no corpo os nomes dos desafetos como forma de sempre saber daqueles que lhe causaram tanto mal.

“Hoje, quando eu me lembro dele, são as minhas fantasias que eu recordo. Mas quem disse que a função do passado é exclusivamente recuperar as coisas que de fato ocorreram? As nossas lembranças, sejam boas ou não, também incorporam mentiras e variações de verdades. No mais, estou convencida de que é melhor lembrar as ilusões do que sofrer de amnésia. Toda felicidade tem um preço”.

Belmar sabe recriar fatos históricos, sem deturpá-los, apenas utilizando-os como base para a ficção. É assim que acontece em “Retrato em branco e preto”, através de uma personagem que encontra uma foto perdida, que aparece anos depois como prova testemunhal de um tempo estranho, quando a família da jovem recebeu a visita de Fidel Castro na sua residência no Recife. “Greta”, é lindo conto narrado em segundo plano por uma estrela de outrora, diva apagada pela modernidade.

O autor, como se percebe, é um repórter com um olhar para os invisíveis e ausentes aos outros. É perceptível essa característica no “pequeno engraxate”, vemos a invisibilidade social de uma criança, sujeita apenas a piedade vã, vazia de significados reais. O que é um corpo? Um esqueleto? Nada mais do que registro de outrora? São essas reflexões presentes em “Dente de ouro”, quando o coveiro arranca sem arrependimentos os dentes de ouro das ossadas desenterradas.

“Cássia”, quase uma crônica, apresenta a lembrança de um show da roqueira Cássia Eller no Recife, quando meses depois a artista morre repentinamente para espanto de todos que participaram daquela última apresentação. “Queria ser Céline Dion” personagens enterram indivíduos e se descobrem em outros, guardados dentro de si. “Ida e volta” é leitura que desperta emoções num passado transfigurado. Um dos mais bonitos e emocionantes, “Dona Efigênia” tem a mente esfarelada e vive na companhia de uma boneca como filha, tudo feito com base no diálogo curto e certeiro sobre a passagem da existência.

Em “Doralice” casarões são demolidos, assim como a memória dos que habitaram naquelas residências, cedendo ao cruel progresso dos prédios de luxo.  “O noivo de branco”, Davi, o sonhador, pretende se casar com a mulher etérea, a vida cheia de fantasia por algo que nunca poderia acontecer. “A invasão” mostra o medo de habitantes do interior com a suposta ameaça comunista, alimentado por um sem fim de mentiras. “Fomos esquecidos por Deus encerra a coletânea, sobre um curioso assalto onde a fé de um pastor se mistura com o medo por conta do bandido perigoso, por ironia do destino, ter o nome de Deus.

Existe uma unidade muito coerente que une todas as histórias desta obra, mesmo elas sendo independentes do conjunto. Esse é talvez o melhor livro de contos do autor. O livro das personagens esquecidas é leve, sem ser superficial. Além de bastante emocionante em diversos trechos. A mãe com Alzheimer, a senhora que vive sozinha, o marido que perdeu a esposa e tantos e tantos outros aspectos que transformam este livro recheado de poesia nua crua de dias estranhos e sem luz para aqueles intérpretes ficcionais.

O livro das personagens esquecidas agrada com textos envolventes, bem trabalhados, gostosos de ler, pois Belmar utilizou o passado e as lembranças tão bem que geram identificação imediata no leitor, baseado na comoção e na saudade. Parece que aquelas personagens estão ao nosso lado contando as próprias histórias.

Se o tema aqui é o esquecimento, é impossível não lembrar dessas figuras e as histórias deles após a leitura. Nesses contos tão bonitos de Cícero Belmar  residem a esperança de que esses indivíduos nunca desapareçam, estejam sempre por aí, retornando do mundo dos mortos em cada nova virada de página, vivendo para sempre na memória dos leitores.

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