Por Ney Anderson

Rachel Watson é uma mulher alcoólatra, que perdeu o emprego e o marido Tom por conta da bebida, e que preenche os seus dias em pubs e nas idas e vindas no trem, embarcando pontualmente às 8h04 de Ashbury até Londres, para tentar despistar as pessoas ao seu redor da sua real situação. Nessas viagens para lugar nenhum, ela observa, através da janela do vagão, um casal apaixonado numa casa próxima aos trilhos. Bastam esses pequenos instantes para ela fantasiar sobre a vida casal, denominado por Rachel de Jess e Jason, na verdade Megan e Scott, que ela julga perfeito, criando belas histórias românticas. A imaginação fértil da passageira só é interrompida quando ela vê algo fora do habitual no casal tão admirado por ela, para logo em seguida saber que a mulher desapareceu. A narradora resolve se envolver no desaparecimento indo até a polícia e contar o que viu, participando ativamente das investigações e da vida de todos os envolvidos.

O problema é que Rachel nunca está sóbria, colocando sua credibilidade à prova, pois nem ela mesma sabe o que de fato pensou ter visto. A polícia, sobretudo, não a julga confiável. A sanidade é algo que coloca Rachel num lugar complicado da vida, onde ninguém confia nela totalmente, nem mesmo a amiga que divide o apartamento. Vergonha, desilusão e a sensação de não ser útil no mundo, são apenas alguns sentimentos que Rachel sente, mas que começa a mudar quando ela resolve tentar descobrir o que aconteceu com Megan. Tornando-se, dessa forma, uma peça fundamental na trama.

Essa é a ideia central do romance A Garota no Trem (Editora Record), escrito pela inglesa Paula Hawkins, e narrado não apenas por Rachel, mas por Anna (a atual mulher de Tom, ex-marido de Rachel) e Megan, a desaparecida. O que une as três mulheres é justamente a imperfeição delas. Uma é alcoólatra e tem sobrepeso, outra trai o marido e a outra é amante. De qualquer forma, a obra tem um viés bastante feminista para um livro de entretenimento, e cumpre bem essa função. O livro é um desses romances best-sellers que se utilizam de recursos para prender a atenção do leitor em todos os momentos da narrativa. Técnicas bastante empregadas desde sempre no mundo da ficção policial, desde Edgar Alan Poe, são usadas à exaustão aqui.

O romance vendeu milhões de cópias e foi traduzido para mais de 40 países.
O romance vendeu milhões de cópias e foi traduzido para mais de 40 países.

No caso da Garota no Trem, a autora entrega aquilo que promete e ponto. É sobre isso que o romance deve ser analisado. Algumas coisas chamam atenção na obra. A primeira é que não existe apenas uma narrativa, mas três. Cada uma sob o ponto de vista das principais personagens, que contam a história por ângulos diferentes se interligando entre si. Apesar de não ser uma alternativa nova, ainda sim foi muito bem feita. Pistas por todas as partes, belos cenários, diálogos rápidos, digressões e flashbacks, induzem o leitor sobre o que pode ter acontecido com Megan. Sem contar que a trama é cheia de reviravoltas.

A cada novo capítulo vamos entrando na psique das personagens, com suas escolhas e defeitos “justificados” pela voz delas próprias. Não existe, nesse caso, uma preferência por uma ou outra, pois o nível de empatia com as três personagens é natural. Elas têm problemas reais, bastante identificáveis.

É interessante a construção dos personagens e do romance como um todo, se interligando de maneira coerente. O livro é bom, no entanto, se perde no emaranhado de histórias, cansando a leitura em diversos momentos. Seria mais eficaz se tivesse metade do tamanho. Talvez seja uma obsessão em boa parte dos autores desse tipo de romance escrever calhamaços. É curioso observar que a autora criou três personagens femininas problemáticas. Aí está o principal ganho da obra, pois é escrito sob pontos de vista de pessoas deslocadas, errantes. Aliás, o trem que dá titulo à obra foi uma grande sacada da autora. O transporte é praticamente um antagonista da história, que acontece de modo vertiginoso, igual a composição que se movimenta rapidamente de estação em estação. A metáfora entre o vagão que se movimenta velozmente até encontrar o seu objetivo, a última estação, e a história que busca o seu final, foi uma ideia interessante da autora.

A adaptação cinematográfica do livro produzida pela DreamWorks e dirigida por Tate Taylor vai ser lançada no Brasil em 27 de outubro, com Emily Blunt (Rachel), Rebecca Ferguson (Anna) e Haley Bennett (Megan) no elenco principal. Vai ser interessante observar como o diretor conseguiu dirigir esse filme, já que o livro é narrado por três vozes bastante diferentes.

A Garota no Trem, traduzido pela romancista brasileira Simone Campos, não é um livro ruim. Absolutamente. Mas devido ao grande comentário de leitores em redes sociais, fez-se acreditar numa obra singular. O que não é. Descrições e digressões sem fim tornam a leitura cansativa em alguns momentos. A tentativa de esconder do leitor o assassino tem um efeito contrário. Não demora muito para que o verdadeiro culpado seja descoberto pelos leitores. Talvez a maior decepção tenho sido aí, no final previsível demais. O romance de Paula Hawkins foi comparado, e muito, com Garota Exemplar, escrito por Gillian Flynn, mas são obras completamente distintas. No livro de Flynn o final foi pensado estrategicamente para este tipo de literatura. De qualquer forma, Stephen King elogiou bastante essa primeira incursão de Paula Hawkins no universo da ficção. Só por isso já dá claras mostras que se trata de um bom livro de entretenimento.

Se fosse para estabelecer algum tipo de nota, esse romance ficaria no meio da tabela. Nem tão bom que não possa ser esquecido, nem tão ruim que não possa ser lido.

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