Foto: Xavier Gonzalez

Por Ney Anderson

Depois de ter publicado mais de duas dezenas de livros de ficção, Paulo Coelho lança agora o primeiro romance autobiográfico Hippie (Paralela), centrado numa viagem de dez mil quilômetros que o escritor fez em 1970 da Holanda até o Nepal, na Ásia. Antes de iniciar a jornada, que não estava nos planos iniciais de Paulo, é apresentado ao leitor já na abertura do primeiro capítulo os locais que eram considerados os centros do mundo para a geração hippie. Eles ficavam sabendo sobre as novas trilhas através do Correio Invisível, uma espécie de boca a boca que identificava lugares interessantes para onde os jovens cabeludos e de roupas coloridas iam em busca de algo maior na vida. Entre esses lugares estavam Piccadilly Circus, em Londres, e o Dam, em Amsterdam. Mas também Machu Picchu, na América do Sul, Tiahuanaco, na Bolívia, Lhasa, no Tibete. Além de Kathmandu, partindo de Amsterdam, numa travessia de ônibus com duração de três semanas, passando por Turquia, Líbano, Irã, Iraque, Afeganistão, Paquistão e Índia.

Através de uma narrativa em terceira pessoa, conhecemos o jovem Paulo, que planeja ser escritor, saindo pelo mundo à procura da liberdade e do significado mais profundo da existência. Uma jornada que inicia na sua prisão e tortura como terrorista pela ditadura militar brasileira, em 1968, enquanto viajava por Ponta Grossa, no Paraná, com uma namorada iugoslava, até o encontro com Karla em Amsterdam, a misteriosa mulher que fez o brasileiro querer viajar a bordo do Magic Bus até o Nepal. Durante o percurso eles vivem uma curiosa história de amor. Enquanto tentam entender os significados desse relacionamento, vão tendo revelações profundas sobre si mesmos e sobre os outros companheiros da jornada.

É transmitido um pouco da filosofia dessa nova “tribo”, sendo rechaçado pelo autor o clichê e o preconceito em cima da cultura hippie, mostrando qual era o objetivo maior daqueles que pareciam, aos olhos da maioria, buscar algo sem sentido, a utopia do “paz e amor”. O romance tem todos os ingredientes que fizeram de Paulo Coelho um fenômeno planetário: prosa fluida, capítulos curtos e rápidos, momentos de beleza e sabedoria. Mas num tom confessional, por se tratar de um relato sentimental da experiência contracultural nos anos 1960 e 1970.

Embora seja a autobiografia centrada numa determinada experiência que Paulo teve, existe muito de ficção para recriar o período relatado no romance. Boa parte do livro é mostrando o sonho (e também a loucura) de fazer um percurso tão grande dentro de um ônibus que não tinha nada de mágico, com apenas o passaporte no bolso e pouquíssimo dinheiro. Tudo baseado na ideia em descobrir algo novo, transcendental, que lhe garantisse experiências, ou reforçasse ainda mais a sua busca incansável por autoconhecimento. Algo que serviria ao autor como material para a escrita dos futuros livros.

“Mandaram que levantasse e tirasse o roupa por completo. Imediatamente começou a apanhar e, como não sabia de onde estavam vindo os golpes, o corpo não podia se preparar, e os músculos não conseguiam se contrair, de modo que a dor era mais intensa do que jamais havia experimentado….Alguém colocou uma caixa com fios e uma manivela entre seus pés. Outro comentou que chamavam aquilo “telefone” – bastava prender os jacarés metálicos no corpo e girar a manivela e Paulo levaria um choque que não havia macho que resistisse. E de repente, vendo aquela máquina, lhe ocorreu a única saída que tinha. Deixou a submissão de lado e levantou a voz: ” vocês acham que eu tenho medo de choque? Vocês acham que tenho medo de dor? Pois não se preocupem, eu vou torturar a mim mesmo. Já estive internado em um manicômio não uma, não duas, mas três vezes; já levei muito choque elétrico, então posso fazer esse trabalho para vocês”. E, dito isto, começou a unhar seu corpo e arrancar sangue, pele, enquanto gritava que eles sabiam de tudo, que podiam matá-lo que não estava nem ligando”. 

A forma como a história vai sendo construída é vertiginosa. Não se tem muito tempo para pensar, porque tudo acontece rapidamente diante dos olhos do leitor. A leitura acontece com tranquilidade. Mais da metade do livro, no entanto, serve para apresentar o personagem Paulo e a holandesa Karla, antes deles embarcarem no ônibus. Eles são duas pessoas totalmente diferentes, mas que acabam se cruzando e resolvem fazer a viagem juntos.

Paulo Coelho tinha vinte e poucos anos no período relatado no romance, mas já havia conhecido alguns países e também flertado com o ocultismo. A viagem, por exemplo, aconteceu baseada na sua busca espiritual. Sempre com a mensagem de que o caminho é mais importante do que a chegada ao destino. As frases de efeito estão por toda a parte e o aspecto místico que sempre rondou a trajetória do escritor também.

Em nenhum momento o sobrenome “Coelho” é utilizado. Numa tentativa de não direcionar o foco do leitor para o famoso escritor, mas para mostrar justamente o personagem antes dele ser alguém consagrado. Esse distanciamento é positivo em Hippie. Ainda na Holanda, ele conhece várias pessoas, algumas delas viciadas em drogas pesadas, como a heroína, com ótimas descrições do que acontece quando alguém utiliza os entorpecentes. Na viagem o jovem também conhece mestres religiosos que lhe dão outras perspectivas de entendimento esotérico.

Paulo Coelho nos anos 1970

O interessante no livro é justamente o fato de ser uma autobiografia não da vida inteira do escritor, mas de um período específico. Mesmo tratando de um relato autobiográfico, muito do que acontece é pura ficção. Quando, por exemplo, o narrador descreve os pensamentos da personagem Karla (que ele nunca mais encontrou depois desse episódio), isso fica bastante evidente. De uma forma onisciente, ele apresenta a vida de alguns personagens importantes no romance, dedicando capítulos inteiros para eles.

Paulo cumpre o que promete, que é levar o leitor para a aventura que ele fez quase cinquenta anos atrás, buscando respostas sobre o significado da vida. Sobretudo como os hippies faziam para descobrir o mundo. Em busca de descobertas, de “trilhas” poucos exploradas ao redor do planeta, passando por cenários deslumbrantes e várias dificuldades pelo caminho. Hippie, além de um curto retrato de uma geração, é principalmente a história de amor entre duas pessoas totalmente diferentes, que por acaso se encontraram em momentos distintos da vida, mas buscando conhecer a si próprios para poder seguir cada um a sua trajetória. No final das contas, Paulo Coelho fez um romance diferente do habitual, que coloca o leitor próximo de uma parte importante, e até determinante, dá vida que ele teria a partir daquele momento.  Não é o melhor dos livros do escritor, mas sem dúvida nenhuma é o que chegou mais próximo do ser humano, bem antes dele se tornar o mago fenômeno editorial. 

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