No último dia 09 de janeiro, João Cabral de Melo Neto, se ainda estivesse vivo, estaria celebrando 100 anos de existência. A palavra “celebrar” parece um pouco inoportuna, considerando o temperamento arredio do velho poeta, descrito na biografia de José Castello, João Cabral de Melo Neto: o Homem sem Alma.  Cabral, que vem de uma tradição de Paul Valéry, para quem a poesia deve ser o império da inteligência, aos 100 anos possivelmente estaria tentando encontrar alguma explicação ou justificativa para sua vida e trajetória literária. Em entrevista à Walquíria Vieira, exclusiva para o Angústia Criadora, o professor de Teoria Literária da Universidade Estadual de Londrina, estudioso das vanguardas literárias, da poesia oral e  da literatura contemporânea, Frederico Garcia Fernandes, fala da importância de João Cabral para a Literatura Brasileira mesmo 21 anos após sua morte. O poeta continua sendo uma referência, sua poesia ainda é lembrada por leitores e circulada nas mídias.

Confira a entrevista a seguir:

Walquíria Vieira: Como pode definir o poeta?

Frederico Garcia Fernandes: A sua pergunta me fez lembrar do saudoso poeta Mário Quintana (1906-1994) que certa escreveu sobre a crítica: “Uma definição define apenas os definidores” [risos].  Mas vou fazer um exercício de tentar não me definir ao defini-lo! João Cabral de Melo Neto pode ser considerado um daqueles raros gênios da literatura brasileira. Existem vários aspectos dos quais é possível identificar os traços formadores de  sua genialidade, mas vou ressaltar apenas dois. O primeiro reside naquilo que Benedito Nunes, um grande crítico de sua obra, apontou como “dialética do desterramento”, caracterizada pelo movimento de separação e retorno de um lugar, um movimento de ida e volta, o que lhe permitiu uma percepção distanciada de uma realidade outrora próxima e que é contrastada com a realidade com a qual passa a viver. Esse fenômeno é muito comum na poesia brasileira e talvez o caso mais famoso é o de Gonçalves Dias com seu poema “Canção do Exílio”, mas também é algo que pode ser identificado tanto na poesia de Sousândrade como de Oswald de Andrade. Um caso bastante particular desta dialética, e que influenciou diretamente João Cabral, é o do itabirano Carlos Drummond de Andrade, cuja sentimento de mundo, em sua poesia, provocado pelos morros de Itabira possuem uma ressonância na representação do sertão cabralino. João Cabral nasceu em Recife, mas sua primeira infância transcorreu em São Lourenço da Mata, no Engenho Poço do Aleixo, próximo às várzeas do rio Tapacurá, um afluente do rio Capibaribe, este último será fundamental em sua obra. Um segundo momento de desterramento se deu nos anos de 1940 quando ele deixa o Recife e se instala no Rio de Janeiro, nesse período ele se torna amigo de Carlos Drummond, a quem já havia homenageado em Pedra do Sono (o primeiro livro publicado por conta própria em 1942, no Recife) e também dedicará seu segundo livro O Engenheiro, de 1945 (este publicado no Rio). Ainda nos anos 40, João Cabral entra para a carreira diplomática e boa parte de sua produção poética é decorrente do olhar para as várias cidades europeias onde morou. Para se ter uma ideia, João Cabral serviu em Barcelona, Londres, Sevilha, Marselha, Madri, Genebra e Berna, para depois ser promovido a Ministro Conselheiro e servir em Assunção, no Paraguai. Todo este trânsito fez com que João Cabral preparasse o terreno para uma poesia em que paisagens, pessoas, tradições  e linguagens dos vários lugares onde morou pudessem se fazer presentes. É o caso, por exemplo, do poema “A urbanização do regaço”, de A Educação pela Pedra, que pode ser considerado um de seus principais livros, publicado em 1966.

“Os bairros mais antigos de Sevilha

criaram uma urbanização do regaço

para quem, em meio a qualquer praça,

sente o olho de alguém a espioná-lo,

para quem sente nu no meio da sala

e se veste com os cantos retirados.

Com ruas feitas com pedaços de rua,

se agregando mal, por mal colados,

com ruas feitas apenas com esquinas

e por onde o caminhar fia quadrado,

eles têm abrigos e íntimos de corpo

nos recantos em desvão e esconsados.

Com ruas medindo corredores de casa,

onde um balcão toca o do outro lado,

com ruas arruelando mais, em becos,

ou alargando, mas em mínimos largos,

os bairros mais antigos de Sevilha

criam o gosto pelo regaço urbanizado.

Eles têm o aconchego que a um corpo

dá estar no outro, interno ou aninhado,

para quem torce a avenida devassada

e enfia o embainhamento de um atalho,

para quem quer, quando fora de casa,

seus dentros e resguardos de quarto.”

Professor Frederico Garcia Fernandes

O segundo aspecto sobre a genialidade de João Cabral na Literatura Brasileira  que gostaria de mencionar diz respeito ao fato de que sua poesia não deixa de ser considerada uma insurgência à poesia Modernista,  mas também há nela o reconhecimento de uma tradição e de um diálogo sem o qual não se chegaria ao racionalismo esquivo do lirismo e ao distrato com a expressão de sentimentos pessoais. Em Pedra do Sono ainda se faz sentir a influência surrealista, em que vários trechos se identificam com a poesia de Murilo Mendes. Drummond, como aqui já referido, foi um ponto de aprendizado do olhar muito importante. Mas é o primo de seu pai, o poeta Manuel Bandeira, que foi considerado o responsável por despertar em João Cabral o ofício poético. Outro pernambucano modernista, este menos conhecido, o poeta, matemático e calculista de profissão, colaborador de Oscar Niemeyer, Joaquim Cardozo, quem chamou a atenção de João Cabral para o crivo racionalista da poesia. Como se vê, sem os modernistas, a poesia de João Cabral não alçaria o reconhecimento internacional que teve. Há na poesia de João Cabral, em contraste aos modernistas, a preocupação com o ritmo e a dicção, o equilíbrio na composição, a negação do emprego de recursos fáceis e vulgares como o trocadilho e a piada comuns aos modernistas. Por isso, seu lugar na literatura é situado junto à Geração 45, um grupo de poetas afinados com a crítica ao Modernismo e de retorno ao verso elevado, mas a escolha de João de Cabral foi além disso, tornando-se a base para o surgimento de uma nova vanguarda poética brasileira (o Concretismo), em 1956.

WV – Cite por gentileza as principais obras do autor.

FGF – O Engenheiro, de 1945, é sem sombra de dúvida uma virada na sua forma de compor poesia. Pode-se observar, como tentativa de exemplificar esta virada, a palavra “nuvem”, que em Pedra do Sono é metafórica, marcada por uma simbologia onírica, já em O Engenheiro, “nuvem” transita para uma morfologia do sensível, ou seja, ela conotará luminosidade, leveza, brancura, representa o que efetivamente cabe à palavra: um fenômeno atmosférico. A obra de 1945 dará início a uma transformação poética que se aprofundará com Psicologia da Composição (1947), Cão sem Plumas (1950) e outras que se seguirão até culminar em Educação pela Pedra,  reunindo poemas escritos entre 1962 e 1965. Sem alterar sua linha de construção racional, antilírica, João Cabral vincula a hispanidade à nordestinidade, criando um tipo de dialeto andaluz-caipira. Há uma outra característica dessa obra que deve ser notada: a prosificação do verso. São versos mais longos e com ritmo variados, o que levou alguns críticos e historiadores da Literatura Brasileira, como Eduardo Portela, a dizer que João Cabral havia incorporado uma flutuação silábica típica da lírica espanhola do século XII. É dela também que está um dos poemas mais conhecidos de João Cabral, “Tecendo a Manhã”:

“Um galo sozinho não tece uma manhã:

ele precisará sempre de outros galos.

De um que apanhe esse grito que ele

e o lance a outro; de um outro galo

que apanhe o grito de um galo antes

e o lance a outro; e de outros galos

que com muitos outros galos se cruzem

os fios de sol de seus gritos de galo,

para que a manhã, desde uma teia tênue,

se vá tecendo, entre todos os galos.

E se encorpando em tela, entre todos,

se erguendo tenda, onde entrem todos,

se entretendendo para todos, no toldo

(a manhã) que plana livre de armação.

A manhã, toldo de um tecido tão aéreo

que, tecido, se eleva por si: luz balão.”

Não é por acaso que Educação pela Pedra recebeu prêmios importantes como o Jabuti e o Pen Clube Brasil, pois o uso da palavra ponderada e racionalizada provoca um efeito tão humanizador quanto a poesia drummondiana, sem o apelo da metáfora. Desse modo, João Cabral chama nosso olhar para um dado de realidade de mundo.

WV – Por que “Morte e Vida Severina” é uma obra tão expressiva? O senhor pode falar sobre seu aspecto atemporal?

FGF – Então, Morte e Vida Severina foi tão premiada como Educação pela Pedra, e torna João Cabral reconhecido no mundo da dramaturgia. Trata-se de um auto natalino, escrito em 1955, a pedido de Maria Clara Machado para o teatro Tablado. Não sei quais os motivos, mas o grupo teatral resolveu não montar mais peça e João Cabral a engavetou. Até que em 1958, um grupo de teatro do Pará a escolheu para apresentar no 1º. Festival Nacional de Teatro de Estudantes, em Recife, garantindo a João Cabral o prêmio de melhor autor. A repercussão do auto se dará com a apresentação no TUCA, pela Companhia Cacilda Becker. De lá em diante, Morte e Vida Severina ganhará projeção internacional, agregando ainda a musicalização de Chico Buarque e Airton Barbosa.

Nesse auto, o rio Capibaribe torna-se uma espécie de fio condutor do sertão para a periferia do Recife. Seu personagem principal, Severino, é um retirante que, assim como o rio, corta o sertão e acaba nos mangues de Recife. O nome próprio adjetiva-se ao longo do auto, o que confere à personagem um sentido coletivo: não é mais “o” Severino e, sim, uma vida severina.  Há na trajetória de Severino um princípio alegórico natalino que é decomposto ao longo do texto pela problematização da relação morte-vida. A morte é colocada como um princípio da vida e a vida severina é um acontecimento que conduz à morte. Esse efeito é realçado ainda pela toponímia do sertão, pelos elementos econômicos (plantação da cana, os engenhos e usinas), pelos traços geográficos (rios, paragens, agreste, caatinga, mata).

WV – A relação com a terra, o teto e as perspectivas podem ser consideradas de identificação até os dias de hoje?

FGF – João Cabral torna o sertão maior que o sentido regionalista que pesa sobre ele, na medida em que mostra a vida pulsando em meio à morte provocada pela aridez do meio. O sertão teve, antes de João Cabral, uma representação bastante contundente da nordestinidade, da relação do homem com a terra, que estão concentradas no chamado neorrealismo, cuja ficção nos deu nomes como José Lins do Rego, Graciliano Ramos, José Américo de Almeida, entre outros. A proposta poética de João Cabral foi além, na medida em que ele agrega à temática regional imagens de efeito cortante, secas e agudas. É como se as imagens dadas em seus versos se fizessem objeto e o objeto se corporificasse numa essência de mundo ao qual somos convidados a adentrar ao lermos sua obra. Por isso, há nas cenas de João Cabral uma atualidade. Por mais que as paisagens possam se modificar, as suas representações poéticas propiciam uma experiência única de compreensão de mundo.

WV – O que pode ser destacado nesse ano que representa o centenário de nascimento do autor e sua influência para outros?

FGF – Em 1999, ano de sua morte, especulava-se que João Cabral seria um forte candidato a ganhar o prêmio Nobel de literatura. Isso seria uma justa homenagem à sua obra e à contribuição que ela teve para a literatura ocidental. É muito importante seu centenário não passar despercebido no seu país de nascimento, pois sem sombra de dúvidas foi um dos maiores poetas do século XX, deixando um legado para as vanguardas, com sua proposição antilírica, como também, para a cultura brasileira, sobretudo o Nordeste. Muitos escritores no Recife, que representam o sertão, não deixam de ter uma ressonância cabralina. É o caso, por exemplo, da ficção de Cícero Belmar, para quem eu chamo atenção sobre seus romances, principalmente, Umbilina e sua grande rival, que tematiza a questão da morte no sertão, lembrando Morte e Vida Severina. Em resumo, um país como o nosso, cuja visibilidade literária é conquistada a duras penas tanto interna como externamente, as instituições de produção e promoção cultural não podem se dar ao luxo de colocar no esquecimento um poeta como João Cabral.  

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