(Foto: Bob Wolfenson/Divulgação)

Por Ney Anderson

Ney Matogrosso tem parte da vida esmiuçada no livro Ney Matogrosso – a biografia (Companhia das Letras), escrita pelo jornalista Julio Maria. De fato, um trabalho muito bem feito do Julio. Mas se para os fãs, muitas das histórias presentes já são conhecidas, se tem o mérito da narrativa que vai e volta no tempo para explicar a vida e a obra do artista em um tom quase ficcional.
Um livro nunca vai dar conta da trajetória completa de alguém, sobretudo a do Ney, artista dos mais inquietos. A história, claro, não se esgota aqui. O recorte que o autor deu, no entanto, nos mostra um ser humano atravessando o mundo em momentos distintos, sempre andando artisticamente na linha tênue, na lâmina da faca, mas sem nunca escorregar para o piegas, para o simplório, mesmo correndo grande risco em vários momentos e pagando o preço por isso. Afinal de contas, bater de frente com o poder da indústria musical por conta de interesses muito íntimos, indo na contramão do mercado em determinados momentos, não deve ter sido tarefa das mais fáceis. Inclusive, mudando de gravadoras por não aceitarem as suas escolhas por discos que os executivos diziam não serem nada comerciais, querendo lhe impor regras. Ney sempre foi de gravar compositores muito antigos, do início do século XX (ou até antes), até compositores novíssimos, totalmente desconhecidos.
A leitura da biografia mostra um personagem que sempre caminhou a partir da própria intuição, de escolhas pessoais, fazendo o que queria fazer, sem concessão. Apenas caminhando com as próprias inquietações, embora nem sempre desse tanto certo como ele (o artista) queria, mas que cravou na alma do Brasil músicas que se tornaram clássicas, pérolas incontestáveis.
Se boa parte do livro apresenta fatos já bastantes conhecidos da vida de Ney Matogrosso (e que é óbvio, não poderiam ficar de fora), é interessante o que Julio Maria faz na reconstituição de cada show, por exemplo, o trabalho de bastidores da montagem dos espetáculos desde os tempos de Secos e Molhados, a escolha das músicas, o embate com produtores e empresários e a atmosfera de cada turnê. O leitor entra no clima. É uma visão praticamente de dentro da história, quase que de maneira imersiva, recheados por detalhes até então inéditos.
Como os apuros financeiros do artista, mesmo ele estando entre os maiores cachês da MPB, mas que nunca soube lidar muito bem com o dinheiro, por conta da sua alma hippie, e o massacre que teve que passar por parte da crítica, enquanto que o público (que também foi mudando ao longo do tempo) seguia fiel às suas escolhas, a avalanche que a AIDS provocou em sua vida, levando uma parcela considerável de amigos e amores.

A biografia mostra ainda, entre coisas, o contato de Ney com outros artistas importantes em sua trajetória, a direção de shows e o uso de vários tipos de drogas, que Ney utilizava para, segundo ele, abrir as portas da percepção.
Além dos ( pelo menos) quatro processos fortes de análise e autoconhecimento (como o Santo Daime e a terapia Fischer Hoffman), para entender o seu papel no mundo e se livrar das amarras que o deixavam travado na retribuição de afeto. Algo que vinha desde criança com os embates com o pai.
A biografia fala a aceitação do público (principalmente o infantil e o feminino), sempre lotando estádios, genasios e teatros, que foi se modificando em cada nova ousadia do cantor. Julio, aliás, pontua muito bem as fases artísticas do intérprete, indo do extravagante ao extremo com o grupo no qual inciou a carreira, até o duo com apenas um músico, Raphael Rabello, para depois começar a se reinventar novamente.
O livro não se atém apenas em Ney Matogrosso com a lente fechada em close, mas o contextualiza no momento político de cada época, no Brasil dos últimos cinquenta anos e na forma como a sociedade encarava as transformações, tendo Ney como figura estranha e sedutora rebolando nos palcos e nas TV’s, revolucionando as cabeças desde o primeiro som da sua voz que saía nas rádios do país com os Secos e Molhados.
O livro nos mostra um cantor de palco (considerado a terceira maior voz da história da música brasileira pela revista Rolling Stones), sempre preocupado com cenários, luzes, figurinos e repertórios que se encaixassem para contar a narrativa do show. Intérprete nato, que nunca atingiu números exorbitantes de vendas de LP’s e, posteriormente, CD’s, com exceção do primeiro disco dos Secos e Molhados, que bateu a marca de 1 milhão de vendas, e que até hoje vende bastante no formato físico e nas plataformas digitais. Mesmo sem grandes vendagens, Ney Matogrosso nunca deixou de lançar os seus trabalhos fonográficos com esmero e cuidado, com gravações de alguns álbuns, inclusive, nos melhores estúdios americanos nas décadas de 1970 e 1980.
Ao terminar a leitura, percebemos como tudo em Ney é fronteira e vanguarda, com o olhar sempre para frente desde o início. Um artista sempre em busca do novo, do misterioso e do ousado, sem medo de chocar o status quo ou a tradicional família brasileira. Algo que ele não para nunca de procurar e provocar por já fazer parte do seu próprio espírito libertário.
A mensagem que fica é muito clara: aceitar ser o que é. Embora ele nunca tenha sido um só. A biografia mostra que Ney Matogrosso é um bicho solto que muitos tentaram domar, mas a sua própria essência, liberta de qualquer amarra, provou que ele não se sujeita a rótulos. Um ser humano, e um artista por consequência, que viveu (e vive) livre.
Ele é, sempre foi, e sempre será um artista inclassificável. Mas alguém que nunca se distanciou de si mesmo.

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