Por Ney Anderson
Em homenagem aos 10 anos do Angústia Criadora, escritores de todo o país falaram com exclusividade ao site sobre literatura, processo criativo, a importância da escrita ficcional para o mundo e para a vida e diversos outros assuntos. Leia a entrevista a seguir com o convidado de hoje. Divulgue nas suas redes sociais. Acompanhe o Angústia Criadora também no Instagram: @angustiacriadora e Facebook: https://facebook.com/AngustiaCriadora
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Carla Bessa Estudou teatro na UNIRIO e na Casa de Artes de Laranjeiras, no Rio de Janeiro. Em1991 emigrou para a Alemanha onde trabalhou por 15 anos como atriz e diretora de teatro. Hoje, vive entre Berlim e Rio e trabalha como tradutora literária alemão-português do Brasil e escritora. Traduziu importantes nomes da literatura contemporânea alemã para as editoras brasileiras. Como autora, publicou dois livros de contos: em 2017, Aí eu fiquei sem esse filho (Oito e meio) e em 2019, Urubus, pela Confraria do vento. Além disso, publicou contos em antologias e revistas na web e escreve regularmente resenhas para o Jornal Rascunho e a Capitolina Revista. Em 2020, Urubus ganhou o Prêmio Jabuti na categoria Contos e ficou em 2° lugar no Prêmio Biblioteca Nacional.
Em 2021 Urubus será lançado na Alemanha pela editora Transit Verlag e Aí eu fiquei sem esse filho sairá na Grécia pela Skarifima Editions.
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1 – O que é literatura?
A literatura funciona como um hiperlink, aquela marquinha criada sobre uma palavra ou texto na web, através da qual uma janela se abre para outra página, que por sua vez pode abarcar outras ideias e te levar a outras janelas e páginas, e por aí vai.
2 – O que é escrever ficção?
Certa vez trabalhei na revisão de um ensaio da artista plástica e educanda negra Juliana dos Santos, em que ela apontava para a relevância do imaginário na capacidade de vislumbre de projetos. O texto afirmava, com razão, que “não podemos construir o que não podemos imaginar primeiro”. Ela disse isso em relação à representatividade negra nos espaços de domínio público e nas mídias, mas eu acho que isso se encaixa em tudo. Você precisa imaginar uma coisa, para poder construir essa coisa. E a literatura de ficção e as artes de forma geral nos dão os instrumentos para o desenvolvimento do imaginário. É por isso que sem artes não há ciência, porque a imaginação é o terreno onde surgem as novas criações. Já dizia o Einstein: “A coisa mais bela que podemos experimentar é o mistério.” Porque é esse mistério que desperta a nossa curiosidade, e a curiosidade é o pavio do saber.
3 – Vocação, talento, carma, destino…..o escritor é um predestinado a carregar adjetivos que tentam justificar o ofício?
Olha, eu não acredito muito em forças sobrenaturais. A escrita é técnica e paciência. Atualmente, estou relendo o livro “On the road”, do Jack Keruac, que virou uma obra cult nos anos 60 e um dos expoentes da geração beat. Aliás, virou também um filme bacana dirigido pelo Walter Salles. Nesse livro, logo no começo, há uma passagem, onde o personagem Dean Moriarty (Neal Cassady) se aproxima do escritor, pedindo que lhe ensine a escrever literatura, no que o outro responde: “O que posso dizer sobre isso, a não ser que você tem que mergulhar nessa história com a mesma energia com que um viciado se droga?” Acho que é mais ou menos por aí.
4 – Qual o melhor aliado do escritor?
O mesmo que pode se tornar o seu maior inimigo: o potencial para o devaneio.
5 – E qual o maior inimigo?
Vide resposta acima.
6 – Escrever é um ato político? Por qual motivo?
Acredito que escrever seja não só produzir uma narrativa, mas também inseri-la num contexto histórico, cultural e político. Mesmo que o autor tente focar em temas atemporais e universais, a recepção sempre será feita através do filtro de um leitor, que é uma pessoa que vive em uma determinada época e em um determinado lugar, sujeita a essas influências histórico-temporais. Assim, mesmo que um texto não nasça como um ato político, a sua leitura será invariavelmente conectada às referências do universo no qual está inserido o leitor.
7 – Quais os aspectos que você leva em conta no momento que começa a escrever?
Já dizia Beckett: “Começar é que é difícil!” (risos). Falando sério: normalmente, eu parto da observação e procuro escrever sobre o que vejo e me incomoda, para lidar melhor com esse incômodo. Eu vou à caça de cenários e histórias nas quais essa inquietação se encaixe de alguma forma. Claro que eu tenho os meus temas. Acredito que todo autor / toda autora tem seus fantasmas, e eles perseguem a gente por vários livros, às vezes, a vida toda.
8 – A literatura existe para entendermos o começo, o meio ou fim?
Na minha novela “Minha Murilo”, que está para ser lançada pela editora Urutau, cai, em determinado momento, a frase: “Às vezes, é preciso saber o fim para entender o começo”. Acho que a literatura nos ajuda a fazer um percurso.
9 – Se escreve para buscar respostas ou para estimular as dúvidas?
Para mim, não resta dúvida de que tudo o que podemos fazer – pelo menos na literatura de ficção – é estimular a reflexão através de questionamentos. É por isso que a gente fala frequentemente por meio de metáforas, a metáfora propicia o desdobramento de uma imagem concreta e real em variados significados. Aí está a força da imagem metafórica, que a coisa por ela retratada vai deixar de ser só a coisa em si e vai se abrir para outros contextos. E cada leitor fará a sua interpretação de acordo com o seu manancial cultural e social, de acordo com a riqueza do seu imaginário.
10 – Criar é tatear no escuro das incertezas?
Apesar de eu trabalhar de uma forma um tanto hedonista e caótica que muitas vezes me leva à becos sem saída, acredito no poder de métodos e técnicas. Acho que é possível, sim, planejar os passos da criação. Sei de autores que projetam todo o livro antes de começar. Já outros, seguem uma intuição, uma imagem ou voz, e vão escrevendo sem muitos planos. A maioria mistura um pouco esses dois caminhos. Acho que tudo é possível e a criatividade abraça essa diversidade de abordagens.
11 – Cite um trecho de alguma obra que te marcou profundamente.
“No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá
onde a criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não
funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um verbo, ele delira.
E pois. Em poesia que é voz de poeta, que é a voz
de fazer nascimentos – O verbo tem que pegar delírio.”
(O livro das ignorãças, de Manoel de Barros)
12 – É possível recriar o silêncio com as palavras? Como?
O dicionário Priberam me oferece para o vocábulo “silêncio”, entre outros significados, o seguinte: “Omissão de uma explicação”. Eu tenho uma preferência pela literatura que sugere, em vez de dizer, que deixa o significado da narrativa suspenso, criando um silêncio no qual cabe ao leitor a junção das pontas, a criação de um sentido final para o texto.
13 – Você acredita que qualquer pessoa pode escrever uma história? Mas, então, o que vai fazer dela escritora, de fato?
Claro que qualquer pessoa pode contar uma história, mas acredito que a literatura se faz não do “quê”, mas do “como” você narra. A literatura é esse saber narrar que, na minha opinião, tem menos a ver com uma formação acadêmica do que com uma eloquência natural, uma voz própria e o prazer em se perder pelos meandros da contação.
14 – É preciso saber olhar o mundo com os olhos da ficção? O mundo fica melhor ou pior a partir dessa observação?
Não vejo as coisas de forma tão binária, portanto não creio que a literatura deva fazer o mundo melhor nem pior, antes acho que ela está aí para nos ensinar a olhar ao redor com renovada curiosidade e com ceticismo, para nos oferecer ângulos diferentes de observação e coragem para trocar de perspectiva.
15 – Todo texto ficcional, mesmo os mais extensos, acaba sendo apenas um trecho ou fragmento da história geral? Digo, a ficção lança o seu olhar para as esquinas das situações, sendo praticamente impossível se ter uma noção do todo?
Penso que se o mundo está sempre em movimento e tudo se transforma permanentemente, não há todo.
16 – Nesse sentido, uma história nunca tem início, meio e fim?
Talvez o fim possa ser o começo?
17 – Você escolhe os seus temas ou é escolhido por eles?
Com certeza que são eles que me escolhem, ou melhor, me perseguem. A literatura é a minha maneira de enfrentar os meus fantasmas ou fugir deles.
18 – É necessário buscar formas de expressão cada vez menos sujeitas ao cânone, desafiando a língua, tornando-a mais “suja”, para se aproximar cada vez mais da verossimilhança que a história pede? Ou seja, escrever cada vez “pior”, longe da superficialidade de escrever “certinho”, como disse Cortázar, talvez na tentativa de fugir da armadilha do estilo único?
Eu vejo dois pontos distintos aí: o primeiro diz respeito ao cânone. Creio que cada autor tem o seu próprio cânone pessoal, que não precisa necessariamente ser o mesmo da sua geração ou de seu meio social. Eu, por exemplo, fui muito influenciada pelo teatro, porque essa é a minha formação profissional. Então, toda a minha literatura tem essa pegada dramática e essa coisa do hibridismo e do anti-ilusionismo porque eu fui praticamente criada pelo Brecht, pelo Pirandello, pelo Beckett. Outros autores terão diferentes influências e modelos. O segundo ponto é que, mesmo dentro da obra de um determinado autor, você poderá encontrar diferentes estilos porque cada livro pode pedir uma linguagem distinta. Acho que hoje temos essa liberdade, mais do que alguns anos atrás. Não há mais essa coisa de uma norma padrão e isso vai ao encontro do pleito atual por mais democratização e diversidade na literatura.
19 – Quando é que um escritor atinge a maturidade?
Espero que nunca!
20 – O leitor torna-se cúmplice do escritor em qual momento?
Essa cumplicidade será renegociada do zero a cada livro.
21 – Apenas um livro para livrá-lo do fim do mundo em uma espaçonave. O seu livro inesquecível. Qual seria?
Grande Sertão Veredas, de Guimarães Rosa
22 – Qual a sua angústia criadora?
O que me persegue por todos os meus escritos, por mais diferentes que os conteúdos dos meus textos sejam, o que está por trás das histórias específicas de forma mais ou menos direta é a ideia fixa de que a identidade não é uma constante, no sentido matemático mesmo do termo, de uma grandeza fixa e invariável. Vejo o ser humano como um ser complexo e passível de transformações, vejo a possibilidade de muitas identidades no decorrer de uma vida e sempre tive essa mania de querer me transformar em outras e outros porque creio que falamos por muitas vozes, ninguém é só vítima ou algoz, bela ou fera, mulher ou homem, do bem ou do mal, e às vezes é possível ser tudo isso junto e ao mesmo tempo.