Crédito: Thays Magalhães

Por Ney Anderson

Em homenagem aos 10 anos do Angústia Criadora, escritores de todo o país falaram com exclusividade ao site sobre literatura, processo criativo, a importância da escrita ficcional para o mundo e para a vida e diversos outros assuntos. Leia a entrevista a seguir com o convidado de hoje. Divulgue nas suas redes sociais. Acompanhe o Angústia Criadora também no Instagram: @angustiacriadora e Facebook: https://facebook.com/AngustiaCriadora

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Carlos Henrique Schroeder (Trombudo Central, 1978)  é autor de Ensaio do vazio (7Letras, 2007), adaptado para os quadrinhos; da coletânea de contos As certezas e as palavras (Editora da Casa, 2010), vencedora do Prêmio Clarice Lispector, da Fundação Biblioteca Nacional, e do romance As fantasias eletivas (Record, 2014), em adaptação cinematográfica e lançado na Espanha pela Maresia Libros. Este livro também foi leitura indicada nos vestibulares UFSC, UDESC e Acafe nos anos de 2016 e 2017. Publicou também História da chuva (Record, 2015), obra contemplada pela bolsa Petrobras Cultural. Em 2020 lançou Aranhas (Record), com narrativas breves inspiradas em espécies de aranhas. Tem contos traduzidos para o inglês, alemão, espanhol e islandês.

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O que é literatura?

Uma experiência individual mediada pelo conhecimento? Interessante. Esse experienciar é riquíssimo e diverso em suas duas pontas: autor e leitor. Enfim: um jogo. Tem uma ideia do escritor mexicano Carlos Fuentes, que diz: “A literatura é o conhecimento pelo imaginação”. Essa fala do meu xará também nos aproxima do jogo: que depende das regras construídas pelo autor e da capacidade de codificação do leitor. E que belo jogo e que bela história de um jogo com uma espécie? Eu imagino os aliens estudando nossa espécie e se deslumbrando com esse jogo milenar em que a peça é um livro e o tabuleiro é a imaginação.

O que é escrever ficção?

Uma esquizofrenia controlada. Você dá voz a outras vozes, às suas obsessões, e principalmente coloca um pouco de ordem no caos de suas referências, visões de mundo, nas perspectivas históricas e sociais que se apresentam aos personagens. É tentar dar permanência ao impermanente.

Escrever é um ato político? Por qual motivo?

Em todos os sentidos. Um: o primeiro significado da palavra “política” nos dicionários é “arte ou ciência de governar”. E um ficcionista governa seus personagens, enredos, narradores, tempos, espaços e, principalmente, seu léxico e estilo. Dois: você escolhe e investiga um tema, cria um universo, um recorte, e todos os atos e escolhas dos nossos personagens e narradores refletem, por oposição ou sincronização, uma visão que temos da escrita, do viver ou do relacionar com o outro. Então, querendo ou não, gostando ou não, todo texto é político, pois toda forma de discurso é.

Para além do aspecto do ofício, a literatura, de forma geral, representa o quê para você?

É a minha tábua da salvação, não fosse por ela eu teria desistido de viver na juventude, já que nada nessa época me aprazia, só os livros. Ler, em primeiro lugar, e escrever, em segundo, me permitiu encontrar um lugar, um espaço, um campo. Então para mim, a literatura deu um sentido para minha vida. Pode parecer bobo, romântico, mas assim foi comigo. Viver outras vidas que não a minha. No jogo da vida, jogar com palavras e personagens, de outros escritores e meus, trouxe e traz um pouco de sentido para uma vida que está destinada a findar. Morreremos? Sim! Mas o que importa é a trajetória (dá-lhe Guimarães Rosa!), então levaremos conosco os infindáveis mundos que lemos e criamos.

O escritor é aquela pessoa que vê o mundo por ângulos diferentes. Mesmo criando, por vezes, com base no real, é outra coisa que surge na escrita ficcional. A ficção, então, pode ser entendida com uma extensão da realidade? Um mundo paralelo?

A Luci Collin tem um livro chamado Vozes num divertimento, acho que é isso…  Ah, e no divertido filme argentino O cidadão ilustre, o romancista Daniel Mantovanni quando perguntado se tudo que estava no seu livro era real-autoficção-blá-blá, dispara à queima-roupa: “Não há fatos, há interpretações”.

Quando você está prestes a começar uma nova história, quais os sentimentos e sensações que te invadem?

Alegria, no primeiro momento, pela centelha criativa e pelo desafio, e desespero depois, pelo medo de não conseguir dar o tratamento adequado ou chegar naquilo que considero ideal. Fico em modo dual: agonia e êxtase.

A leitura de outros autores é algo que influencia bastante o início da carreira do escritor. No seu caso, a influência partiu dos livros ou de algo externo, de situações cotidianas, que te despertaram o interesse para a escrita?

Desde criança eu rabiscava histórias. Na pré-adolescência eu enchia aquelas cadernetas da Tilibra de histórias, mas a leitura foi o grande disparador, e ainda é. O engraçado é que eu pulei a etapa dos livros para crianças, não lia e meus pais também não liam para mim. Me transformei em um rato de biblioteca depois dos 12 anos, tendo como suporte bibliotecas públicas e a ótima biblioteca do meu avô. Não adianta escrever se você não tem repertório, referências, visão de mundo, e isso os livros te trazem de sobra. Os livros são a minha muleta, para escrever e para viver.

Você escreve para tentar entender melhor o que conhece ou é justamente o contrário? A sua busca é pelo desconhecido?

Eu escrevo para domar obsessões e investigar temas. Se eu escrevi um livro sobre a solidão, como foi As fantasias eletivas, não é porque eu entendia/dominava o tema, mas sim porque eu queria mergulhar nele. É uma busca incessante. Um escritor que acha que domina algo, está no meio do caminho para o fracasso. O imponderável é o grande fator da escritura.

O que mais te empolga no momento da escrita? A criação de personagens, diálogos, cenas, cenários, narradores….etc?

Os diálogos. Adoro. Emprestar humanidade ou desumanidade através da boca dos personagens. Encontrar uma voz e uma dicção para cada um. Ninguém fala de forma igual no mundo, cada personagem tem seu próprio movimento de fala, sua própria textura social e linguística. Gosto de ouvir a voz deles e deixar que falem.

Um personagem bem construído é capaz de segurar um texto ruim?

Acho que não. Você pode ter um ótimo personagem, bem construído, e ele estar em total desacordo com tudo. Isso é muito frequente. Não adianta ter um grande personagem e desperdiçá-lo numa construção ruim. Bom, segurar um texto ruim, até pode ser, mas salvar o texto, definitivamente não.

Entre tantas coisas importantes e necessárias em um texto literário, na sua produção, o que não pode deixar de existir?

Fluidez. Mas isso é pessoal, tem gente que adora um texto enrolado. Aliás, tudo é pessoal no campo literário: há os conservadores, os centrões, os progressistas, os vanguardões, há todo tipo de torcida no quesito “forma de contar uma história”. E isso abrange escritores, críticos, jornalistas, júris de prêmios. Por isso que prêmios literários são uma dádiva e uma ilusão, pois um livro premiado diz muito mais sobre o júri que premiou do que sobre o livro em si.  Cada um defende uma “forma” que acha ideal de escritura.

Nesse tempo de pandemia, de tantas mortes, qual o significado que a escrita literária tem?

É um alento, não é? A gente continua lendo e escrevendo, dividindo essas alegrias comuns. Pois tá puxado: ignorância, negacionismo, violência, mais de 400 mil mortos… E o pior: pessoas que ainda defendem Bolsonaro com unhas e dentes. Que fase do Brasil.

No Brasil, o ofício do escritor é tido quase com um passatempo por outras pessoas. Será que um dia essa realidade vai mudar? Existem respostas lógicas para esse questionamento eterno?

Vivemos numa sociedade fraturada, em um país desmontado, com um mercado literário que mal funciona, o que vale é cada escritor/a continuar na sua luta, na maior honestidade possível com suas obsessões e com seus textos, e não se dobrar aos temas da moda, ao que o mercado literário quer, ou os editores querem… Para ter um julgamento decente do maior crítico literário de todos: o tempo.

A imaginação, o impulso, a invenção, a inquietação, a técnica. Como domar tudo isso?

Prática. Estudo. Observação. Ser humilde para aprender e sagaz para escrever.

O inconsciente, o acaso, a dúvida…o que mais faz parte da rotina do criador?

Ler de tudo, sem preconceitos, deixar-se influenciar por tudo, e, principalmente descobrir sua fisiologia: qual o horário que você escreve melhor, em qual revisa melhor e em qual edita melhor?

Essa dica peguei do Julian Barnes. Mas claro que é uma utopia em termos de Brasil, já que somos todos uns estropiados que trabalham como loucos em diversas funções e a escrita acaba acontecendo quando dá.

O que difere um texto sofisticado de um texto medíocre?

A forma. O estilo. A força que ele carrega.

O leitor torna-se cúmplice do escritor em qual momento?

A partir do momento em que ele embarca de verdade na história e segue desarmado até o final.

O leitor ideal existe?

Acho que não. Os leitores têm seus próprios paradigmas, suas jornadas, seus tempos de amadurecimento e maturação. O leitor, na contemporaneidade, já é um ideal em si. Um revolucionário: alguém que fecha as cortinas do mundo para entrar em outro mundo.

O simples e o sofisticado podem (e devem) caminhar juntos?

Podem, claro. Os livros da Rachel Cusk, por exemplo, são simples e sofisticados. Adoro. Mas um livro pode ser super simples, como “O velho e o mar”, do Hemingway, por exemplo, e nem por isso é menos potente e continua encantando geração de escritores e leitores. O simples e o sofisticado podem caminhar juntos, separados, o que importa é a experiência que o jogo proporciona.

Cite um trecho de alguma obra que te marcou profundamente.

“Sabia bem que os atos humanos, todos os atos, todas as pessoas, os atos de paixão e ambição, as fraudes, sedução, acúmulo, evasão, os atos de malícia e de fracasso, a competição e adulação e a generosidade, os atos destinados a impressionar, despertar a atenção, para serem gravados na memória da família, ou do grupo ou do povo ou da humanidade, os atos insignificantes e os atos generosos, os calculados e os incontroláveis, os maldosos, quase todos levam sempre a um ponto onde não se pretendia chegar”.

Conhecer uma mulher (Cia das Letras). Amós Oz. Tradução de Nancy Rozenchan.

Apenas um livro para livrá-lo do fim do mundo em uma espaçonave. O seu livro inesquecível. Qual seria?

O Narrativa completa do Felisberto Hernández. Sem dúvidas.

Qual a sua angústia criadora?

O tempo. Falta tempo para todas as histórias que quero ler e contar.

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