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Por Ney Anderson

Em homenagem aos 10 anos do Angústia Criadora, escritores de todo o país falaram com exclusividade ao site sobre literatura, processo criativo, a importância da escrita ficcional para o mundo e para a vida e diversos outros assuntos. Leia a entrevista a seguir com o convidado de hoje. Divulgue nas suas redes sociais. Acompanhe o Angústia Criadora também no Instagram: @angustiacriadora e Facebook: https://facebook.com/AngustiaCriadora

 

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Cinthia Kriemler nasceu no Rio de Janeiro e mora em Brasília. Publicou, pela Editora Patuá: O sêmen do rinoceronte branco (Contos, 2020) – finalista do Prêmio Guarulhos 2020, categoria Escritor do Ano; Tudo que morde pede socorro (Romance, 2019);  Exercício de leitura de mulheres loucas (Poesia, 2018); Todos os abismos convidam para um mergulho (Romance, 2017) – finalista do Prêmio São Paulo de Literatura de 2018; Na escuridão não existe cor-de-rosa (Contos, 2015), semifinalista do Prêmio Oceanos de 2016; Sob os escombros (Contos, 2014); e Do todo que me cerca (Crônicas, 2012). Participa de antologias de contos e de poesia. Tem textos e poemas publicados em diversas revistas eletrônicas.

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O que é literatura?

Vastidão. Se fosse para conceituar, eu teria que falar em literatura de ficção, a que transforma a realidade por meio da escrita, e a de não ficção, a que compila obras sobre um determinado assunto. Mas essa seria uma resposta padrão. E eu acho os padrões muito engessados. Para mim, a literatura é uma explosão. E aqui eu me refiro exclusivamente à literatura ficcional, que me afeta mais diretamente como escritora. Eu acredito que a literatura acontece tanto em quem escreve quanto em quem lê. Precisa incomodar, arrancar das zonas de conforto, conversar. Precisa ser instrumento que leva à reflexão, que causa espanto, raiva, revolta, emoção. Que cria e recria mundos, reais ou irreais. Que sabe de onde vem, mas não tem como saber até onde vai chegar — uma questão mais de acolhimento do que de autoria. Literatura é oxigênio. Sem ela, a cegueira intelectual é inevitável. E a vida fica realmente muito feia e vazia.

O que é escrever ficção?

Criar, desconstruir, mostrar, contar. É um turbilhão. Inferno, purgatório, céu. Tem gente que diz que é disciplina. Pra mim, é caos. E eu adoro o caos como ponto de partida. Escrever ficção é a possibilidade de denunciar, defender, apontar, convidar à cumplicidade dos temas. É uma relação de agonia e prazer. Eu gosto desse transitar entre extremos.

Escrever é um ato político? Por qual motivo?

Sim. A escrita joga luz, traz à tona temas que afetam a sociedade. Especialmente os mais polêmicos, como o racismo, o machismo/sexismo, a homofobia, a depressão, a violência contra crianças, mulheres e idosos (violência sob todas as suas formas), o abandono, entre outros. Escrever, para mim, precisa promover reflexão e conduzir aos questionamentos, à discussão de temas diversos. É ato político quando dá voz aos invisíveis, discute as questões sociais, se posiciona. E eu não me refiro aqui a uma escrita panfletária, mas a uma escrita consciente.

Para além do aspecto do ofício, a literatura, de forma geral, representa o quê para você?

Ar. Voz. Escolha. Instrumento de reflexão, de denúncia, de resgate. Paixão. Vida.

O escritor é aquela pessoa que vê o mundo por ângulos diferentes. Mesmo criando, por vezes, com base no real, é outra coisa que surge na escrita ficcional. A ficção, então, pode ser entendida com uma extensão da realidade? Um mundo paralelo?

Uma realidade revisitada. O mundo, ou vários mundos, sob diferentes óticas. Cada ângulo, uma perspectiva. Ponto e contraponto. Tese e antítese. Acredito na ficção como um infinito de possibilidades. Ficção é criar, desconstruir, recriar, modificar tudo aquilo que o escritor quiser. É um desfazer-fazer-refazer que abrange tanto o que já existe de real, o tangível, quanto aquilo que só existe na imaginação do autor, o intangível. E é verdade isso que você disse: muitas vezes, a gente escreve uma coisa num sentido e depois vê que as pessoas compreenderam o que a gente escreveu de uma maneira completamente diferente daquela que a gente idealizou. E essa é, definitivamente, a beleza da ficção. É aí que está o encantamento.

Quando você está prestes a começar uma nova história, quais os sentimentos e sensações que te invadem?

Eu brinco comigo mesma que sou tomada de assalto pelos três “A”. Ansiedade. Angústia. Agonia. Fico com medo de perder os detalhes do turbilhão que está dentro de mim e aí tenho até palpitação. Saio anotando frases, lembretes, indicações de temas que preciso pesquisar. Enfim, sou o caos.

A leitura de outros autores é algo que influencia bastante o início da carreira do escritor. No seu caso, a influência partiu dos livros ou de algo externo, de situações cotidianas que te despertaram o interesse para a escrita?

Eu leio desde muito cedo. E também sempre gostei de escrever, mas não era ficção. Ficção eu só comecei a escrever aos 50 anos. Minhas influências vêm de fontes bem distintas. Machado de Assis, Graciliano Ramos, Lygia Fagundes Telles, Clarice Lispector, João Cabral de Melo Neto, Aloísio Azevedo, Cecília Meireles, Jorge Amado. Mas vêm também das situações cotidianas. Especialmente as que envolvem sofrimentos, abusos, violências. Dos excluídos, dos invisíveis, é deles que vêm minhas histórias.

Você escreve para tentar entender melhor o que conhece ou é justamente o contrário? A sua busca é pelo desconhecido?

Interessante. Nunca tinha pensado dessa forma. Creio que as duas coisas acontecem. Escrevo, primeiramente, para pôr para fora algo que me incomoda. Então, eu poderia dizer que, sim, é um jeito de colocar o que eu já conheço no papel. Mas, ao mesmo tempo, quando finalizo um livro, acabo percebendo outros aspectos sobre os temas que elenquei. Aspectos que não existiam dentro de mim quando comecei a escrever. Que só surgem depois que finalizo o livro e também depois que recebo as impressões dos leitores, que é quando o livro deixou de me pertencer. A minha busca é sem regras. Busco o desconhecido, o pouco conhecido e sempre mais sobre o já conhecido. E também permito o movimento inverso: ser buscada por tudo isso.

O que mais te empolga no momento da escrita? A criação de personagens, diálogos, cenas, cenários, narradores….etc?

A criação e a montagem sobre a vida dos personagens, claro. É emocionante. Chego a um grau de detalhismo que é até meio obsessivo. Faço isso em nome da verossimilhança, mas também porque quanto mais detalhes eu teço mais segura me sinto. E me empolga muito a pesquisa. Adoro pesquisar temas e subtemas que serão necessários à elaboração da história. Eu me perco nisso. Fico um tempo grande indo atrás de dados, fontes, índices.

Um personagem bem construído é capaz de segurar um texto ruim?

Nada segura um texto ruim. Pelo contrário, um bom personagem inserido num texto com problemas só faz é gerar pensamentos do tipo: “Que desperdício!”. Por outro lado, acho difícil um autor que sabe construir um bom personagem ter o texto inteiramente ruim. Mas já vi acontecer. Inclusive, comigo. De vez em quando crio uns personagens dos quais gosto muito, mas percebo que o contexto nos quais estão inseridos está fraco. Resgato todos e os mando para outros textos. Eles me agradecem (rs).

Entre tantas coisas importantes e necessárias em um texto literário, na sua produção, o que não pode deixar de existir?

Incômodo.

Nesse tempo de pandemia, de tantas mortes, qual o significado que a escrita literária tem?

Eu não diria “o” significado. Mas “um dos” significados. Não se pode obrigar um escritor a falar sobre a pandemia em si. Um escritor precisa ser livre para decidir sobre o que vai escrever. Mas, se escolher falar sobre a pandemia, que o faça de forma consciente. De modo a que crie um registro literário histórico que não permita a banalização dessa e de nenhuma outra tragédia humanitária. Que seja capaz de falar sobre a real dimensão das perdas, sobre o descaso com a saúde pública neste país, sobre a agonia de um povo. Sem se esquecer das decorrências e das interferências interligadas à pandemia, ou seja: a fome, o desemprego, a miséria.

No Brasil, o ofício do escritor é tido quase com um passatempo por outras pessoas. Será que um dia essa realidade vai mudar? Existem respostas lógicas para esse questionamento eterno?

Acho que ainda estamos bem longe desse dia em que o escritor vai poder viver do seu ofício. Infelizmente. O Brasil é um país que sucateia a educação e, consequentemente, a literatura. Aqui há uma classe alta que quer que os pobres permaneçam o que sempre foram: mão-de-obra barata, submissa, explorada. A ideia é afastar os pobres da leitura, do estudo, porque é pela leitura e pelo estudo que se dá o livre-arbítrio, que as pessoas aprendem a pensar e se desenvolvem, e não  aceitam mais dominação e controle. Nesse cenário, é difícil se consolidar o hábito da leitura. E, mesmo que as pessoas queiram ler, os preços e as taxações as afastam cada vez mais da leitura.

A imaginação, o impulso, a invenção, a inquietação, a técnica. Como domar tudo isso?

Domar? Para que domar? Domar é discurso de dominantes. Precisamos é liberar tudo isso. Ombrear. Respeitar. Crescer. Aprender. Libertar.

O inconsciente, o acaso, a dúvida…o que mais faz parte da rotina do criador?

Tudo o que ela ou ele quiser que faça. Inclusive os que você citou na pergunta 14. E, para alguns/algumas escritores, não há sequer uma rotina. Eu mesma sou uma indisciplinada. Rotinas não me fazem muito feliz, não. Posso até cumprir algumas, por necessidade, mas não gosto. Porque rotina, para mim, é uma forma de acomodação.

 O que difere um texto sofisticado de um texto medíocre?

Não acho que sofisticado seja o oposto de medíocre. Há textos sofisticados que me causam sono. Muitos deles. E muito sono. Há textos simples, não rebuscados, que falam diretamente com o leitor e que são maravilhosos. E há textos medíocres. Independentemente da linguagem. São outras as causas que me fazem achar um texto medíocre. De modo geral, não gosto de rotular os textos.

O leitor torna-se cúmplice do escritor em qual momento?

Quando sente que aquela história nunca mais vai sair da sua cabeça. Mas talvez possa ser um pouco antes, quando ele não consegue se afastar da leitura e fica triste a cada vez que tem que parar de ler para fazer outras coisas. Ou pode ser ainda que seja no momento em que ele se identifica com a história, se deixa tocar por ela num sentido emocional. Pode ser em vários momentos. O importante é que se torne cúmplice.

O leitor ideal existe?

Todos os leitores são bem-vindos. Mas eu, particularmente, espero sempre o leitor crítico, o leitor que dialoga, o leitor que elogia, mas que também se incomoda. Ideal é uma palavra perigosa. Idealizar o outro é colocá-lo num pedestal. Gosto mais de desejar. Eu desejo leitores-cúmplices, Como você mesmo citou na questão anterior. Cumplicidade é um elo mais forte. Não é adoração, não é idolatria: é comprometimento, compreensão, comunhão.

O simples e o sofisticado podem (e devem) caminhar juntos?

Podem, sim, caminhar juntos. Mas eu prefiro o mais simples. Se eu posso atingir a compreensão tanto dos mais cultos quanto dos menos cultos fazendo uso de uma linguagem simples, porque eu optaria pelo caminho mais complicado? A sofisticação, por outro lado, tem sido vista apenas como o uso de palavras rebuscadas e tradicionais num texto. Eu considero que a sofisticação pode estar presente na forma de conduzir um tema, e não na linguagem usada.

Cite um trecho de alguma obra que te marcou profundamente.

“Há muito já não sou gente. Quiseram que eu fosse um objeto. Sou um objeto. Que cria outros objetos e a máquina cria a nós todos. Ela exige. O mecanismo exige e exige a minha vida. Mas eu não obedeço totalmente: se tenho que ser um objeto, que seja um objeto que grita. Há uma coisa dentro de mim que dói. Ah como dói e como grita pedindo socorro. Mas faltam lágrimas na máquina que sou. Sou um objeto sem destino. sou um objeto nas mãos de quem? tal é o meu destino humano. O que me salva é grito.”  (Clarice Lispector. Água Viva).

 Apenas um livro para livrá-lo do fim do mundo em uma espaçonave. O seu livro inesquecível. Qual seria?

Cem Anos de Solidão

(Sob protesto. Escolher um só é muito pouco).

 Qual a sua angústia criadora?

Pensar na injustiça, na violência, na submissão das mulheres, no preconceito sob todas as suas formas horrendas, na dominação, no desmonte do país. Denúncia social. Essa  é a força motriz para a minha escrita.

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