Por Ney Anderson
O romance Paradiso (Estação Liberdade, 616 págs) se tornou através dos anos um mito da literatura latino-americana. Edificação máxima do esplendor barroco, fusiona heranças culturais e literárias de vertentes híbridas. Percorre a Grécia antiga, a América criolla, a Europa de Dante, Góngora, Goethe e Voltaire. Foram quase 20 anos para elaborar esse que é o romance referencial do cubano José Lezama Lima, marco de uma radicalização estilística sem concessões. Ao leitor, portanto, não se trata de uma leitura qualquer, mas uma imersão num mosaico de sinestesias, que transformam Paradiso numa experiência literária assombrosa.
Tentar definir a trama do livro como sendo de cunho autobiográfico, por acompanhar o crescimento do asmático personagem José Cemí, da infância à vida adulta, em meio aos dilemas de uma sexualidade que o perturba e ao desenvolvimento de sua vocação poética, seria reducionista e impreciso. Porque a Lezama Lima pouco importam as prerrogativas da narrativa e do vocabulário convencionais: toda a lógica do mundo, as observações, as descrições, as reflexões pessoais, cedem a uma iconoclastia poética devastadora, tornando nebulosas as fronteiras do que entendemos por “realidade”. O lirismo pessoalíssimo de Lezama Lima reverbera em cada cena, em cada passagem, em cada ponto e vírgula, como no seguinte trecho:
“Diante da casa de druídicas suspeitas lunares e com anáguas deixadas pelas estinfálidas, sentado numa cadeira de balanço de pedra de raspado madreporário, o chinezinho dos rápidos filhós de ouro, envolto no linho apotrocaico, movia-se osseamente dentro daquele casarão de pedra com o linho enfunado pelo pé de vento da procela. Do tédio que lhe ofertava o ovo de cristal excedente, fazia a batutinha delicadíssima do cerimonial, ora levando o sono de antílopes e candelabros frontais até o folhudo cinzeiro da mão direita, ora elevando as canelas de uma perna até o assento, decidido a resistir aos salientes noturnos por trás do entrecruzamento da osteína instrumental.”
A despeito da verborragia poética do escriba cubano, nenhum vocábulo da obra soa fortuito, ao contrário: cada um deles parece ter sido rigorosamente planejado, como a cumprir esta dupla função, estética e transcendental, que acaba por conduzir o leitor a uma inevitável epifania. O livro exerce um sublime e ao mesmo tempo dolorido mergulho no universo das leituras de formação, da amizade e da lealdade cúmplices, da sexualidade em suas exuberâncias mais fantasiosas. O hermetismo do texto só reforça a aura própria das coisas especiais: Paradiso é uma obra ímpar, recheada de discrições perfeitas, onde o leitor não perde de vista nenhum detalhe que compõe o romance.
“Como se tivessem retirado as pranchas metálicas, o coro dos banhistas ondulou ao soprar sua charamela perto do vestiário dos copeiros; avançaram para um ponto como se fossem transmitir uns aos outros uma secreta mudança de guarda, e desapareceram na fumacinha do café que vinha arrematar a espreita de um gato cor de pólvora, agigantado, levemente monstruoso, como os que aparecem nos pesadelos dos generais dos Cem Dias, com sua pele muito esticada, terminada em inumeráveis biquinhos como mamas incipientes, passeando arrastado ao longo do refeitório, como a sombra sibilante que surge do mar e desaparece deglutida pelo gênio dilatador da ceiba.”
José Lezama Lima talvez forme ao lado de Guillermo Cabrera-Infante e Alejo Carpentier a santíssima trindade da alta literatura da Ilha. Mais evocado em referências do que propriamente lido, Lezama Lima nunca gozou de popularidade em sua terra natal, também pelo fato de Paradiso, seu livro mais notório, ter ficado no ostracismo por anos pelo governo revolucionário, em razão da alta dosagem erótica da trama. Nascido em 19 de dezembro de 1910, em Havana, Lezama Lima foi editor, romancista, ensaísta e, sobretudo, poeta, tendo estreado na literatura com a publicação do longo poema “Muerte de Narciso”, em 1937. Seu estilo peculiar de escrita fora influenciado em especial pelo poeta espanhol Luís de Góngora y Argote, alcançando com Paradiso uma retumbante repercussão, pelo qual chegou a ser chamado de “místico da cultura”, capaz de “tornar visível o invisível”. Outras de suas obras incluem A expressão americana (1969) e Las eras imaginarias (1971). Lezama Lima morreu em Havana, em 8 de agosto de 1976.
Com informações da assessoria.