Por Ney Anderson
Os livros de contos costumam ser renegados por editoras que não veem nesse tipo de ficção um mercado promissor igual acontece com o romance. Mas tudo isso é uma questão puramente mercadológica, não tem nada a ver com a qualidade empregada em ambos os tipos de narrativa. Existem milhares de romances ruins, da mesma forma que livros de contos. Mas o que se deve observar no texto não é a quantidade de páginas, mas se ele pode ser classificado, de fato, como um material artístico. É verdade que muitos jovens escritores começam a carreira literária pelo conto, pois a estrutura ficcional é menor. Mas o tamanho do texto é justamente a arma do contista. O espaço narrativo reduzido, se bem aproveitado, pode revelar “grandes” histórias, com informações que ficam subentendidas, nas entrelinhas, onde o leitor nem sempre percebe. A arte de escrever um conto precisa ser bastante sofisticada, não pode ficar apenas no campo das ideias superficiais.
Muitos autores, no Brasil e no mundo, entraram para a história da literatura produzindo contos, como Rubem Fonseca, Dalton Trevisan, David Foster Wallace, Raymond Carver, e a prêmio Nobel de Literatura, a canadense Alice Munro. Só esses nomes comprovam que o gênero é tão forte quanto qualquer romance de mil páginas. Na efervescente literatura brasileira contemporânea vários nomes despontam como pertencente a esse tipo de ficção. São contos bastante inventivos, de uma singularidade animadora. Dois desses autores lançaram recentemente livros de contos com títulos e textos incomuns. Tempo nublado no céu da boca (Edições Interpoética), do Pernambucano Cleyton Cabral, e Um Homem burro morreu (Editora Oito e Meio), do carioca Rafael Sperling. Talvez eles não se conheçam, mas a literatura de ambos andam por campos bastante semelhantes na ideia, embora o estilo deles seja completamente diferente.
Em Tempo nublado do céu da boca, Cleyton Cabral, que além de escritor é publicitário, apresenta quarenta textos curtos carregados de ironia, onde alguns se aproximam da proposta do haikai, mesmo que essa classificação seja apenas a ponta do iceberg na literatura bastante criativa do escritor pernambucano. As narrativas desse livro mostram um olhar certeiro sobre temas do cotidiano, mas com uma sagacidade enorme, à exemplo do microconto Furo. “Depois dos tiros, o repórter cobriu o morto”, ou em Lua de Mel Pela Internet, “Amor, vamos para a cam?”. Temas difíceis são tratados sobre um novo viés, como pedofilia, muito bem trabalhado no conto Barbie.
Diversos outros interessantes assuntos são narrados nesse livro. O mais impressionante em Tempo nublado no céu da boca é o poder de síntese que Cleyton Cabral conseguiu fazer, entretanto, mesmo que a proposta de fato tenha sido essa, de escrever pouco e objetivamente, seria mais interessante se o autor explorasse melhor alguns temas. Isso não quer dizer que o livro não é bem escrito, de maneira alguma, mas parece que ali é apenas um embrião de algo muito maior, de um talento em construção que está sendo trabalhado para chegar em níveis mais altos artisticamente. De qualquer forma, é possível perceber que Cleyton Cabral já tem um universo próprio, em fase de amadurecimento estético. Contudo, os contos, ou micronarrativas, do jeito que estão publicados, se aproximam bastante do universo teatral, uma das formações do autor, que já teve trabalhos encenados no Recife. Talvez isso possa justificar essa opção por textos diretos. Sem dúvida um jovem e promissor escritor.
Já em Um homem burro morreu, de Rafael Sperling, que lançou também em 2011 o primeiro livro, Festa na usina nuclear, a
sensação é de um livro mais trabalhado, com todas as ideias construídas com maestria. Na abertura já é apresentado o curioso texto Caetano Veloso se prepara para atravessar uma rua do Leblon. “Caetano Veloso se prepara para atravessar uma rua do Leblon. Ele está na beira da rua, concentrado, olhando os carros. A rua possui muitos carros, todos passando em alta velocidade, que podem atropelá-lo ou destruí-lo(…)(…)Ele chega ao o outro lado da rua em segurança. Ele comemora a travessia segura. – Como você se sente após ter atravessado a rua, Caetano Veloso? – Eu estou muito feliz”. Sperling brinca com uma “notícia” veiculada em site de fofoca com esse mesmo título, e ironiza o tipo de informação inútil. Ao todo são 27 textos ficcionais, que vão apresentando toda a banalidade do mundo, como o homem que tem a vida direcionada por livros de autoajuda do tipo “Manual prático para comprar pão em padaria”, “Técnica e arte de fazer pipoca”, Manual Técnico e Abrição de Portas”, tão na moda hoje em dia. São narrativas, ainda que bastante visuais, de muito experimentalismo, o que pode afastar o leitor comum.
Ambos os autores têm a mesma idade, 29 anos, e uma afinidade muito grande através da arte que produzem, mesmo que essa igualdade não seja proposital. Os problemas sociais do Brasil, nesse caso, faz parte das histórias contadas nos livros dos dois escritores, sob um olhar único e bastante pessoal. Na medida em que as páginas vão sendo viradas a percepção é de grande insatisfação com o mundo de hoje, principalmente o lado urbano, ainda que trabalhadas por um aspecto irônico e de bastante sarcasmo, de uma forma quase humorística. É bom saber que os escritores brasileiros contemporâneos, de um modo geral, se preocupam com essas questões, mesmo sem ser panfletário, até porque não precisa. A obra de arte está aí para isso, mostrar o lado bonito das coisas, mas também ironizar assuntos aparentemente banais e outros mais sérios, colocando todos nos mesmos níveis de importância, como acontece na vida real. Cleyton Cabral e Rafael Sperling fazem parte de uma geração muito interessante, que sabem da força que a literatura tem e por isso mesmo não abrem mão de falar das coisas que o incomodam.