Na continuação do projeto Eu escritor, o contista Fernando Farias, nesse belo dia de sol, que combina com o brilho do seu sorriso, fala um pouco dos clichês e lugares comuns que habitam boa parte dos textos de ficção. Segundo o autor, se algum dia você encontrar algo do tipo: “Ela tinha olhos cor de mel, lábios carnudos, pele cor de canela..”, desista desse livro. Não vale o tempo, nesse caso, perdido com a leitura. Agora, um leitor que pretende ser um criador, precisa ficar atento com os recursos técnicos que são utilizados por vários autores para causar um efeito dentro da narrativa. Fernando Farias dá o exemplo do livro 1984, de George Orwell, que começa com uma descrição do clima, um falso lugar comum para utilizar o sol como passagem do tempo que permeia todo o romance. É o que sempre digo, no Angústia Criadora quem sai ganhando é você. Boa leitura.

Por Fernando Farias

 

Imagem: reprodução da internet

 

Uma vez li uma desgraça de um poema que começava assim.

“É lindo ver você dormindo, de olhos fechados e com um lindo e belo sorriso nos lábios”.

Antes que digam que estou aqui criticando os colegas escritores, começo contando uma história que aconteceu comigo. Numa oficina literária do SESC ministrada pelo Marcelino Freire, num dos exercícios escrevi a seguinte frase num conto: “ela transformava sonhos em realidade”. Risinhos, olhares de lado, gargalhadas do Marcelino. Escapei por pouco de uma vaia.  Suei frio diante de vinte pessoas. Mudei a frase para “ela transformava nuvens em pedras”. Alívio geral.

Falamos dos lugares comuns. Impossível escapar das frases feitas, já ditas, rebatidas, repetidas milhões de vezes. Tão chatas como a palavra “entranhas” nos poemas e a atual “nunca desista dos seus sonhos na busca desta tal felicidade”. Já vi livros de poemas de autoajuda que falam isso.

É fácil descrever personagens baseados em lugares comuns. “Ela tinha olhos cor de mel, lábios carnudos, pele cor de canela, cabelos longos soltos ao vento, um caminhar suave e uma voz jovial e musical”. Apague estas coisas se um dia você escrever assim e desista de qualquer história que comece descrevendo a personagem deste modo. Não leia o resto do livro.

Há quem ache que o certo é iniciar um romance citando como está a cor do céu, o lugar comum de se começar as histórias com a meteorologia. “Era um dia de sol”, “Era um dia chuvoso”, e o clássico “era uma vez um lindo domingo de sol”. Se você observar bem, estas histórias podiam ser contadas em qualquer temperatura, até mesmo porque se passam dentro de casa.

Ora, vocês podem me rebater citando, por exemplo, a abertura do clássico livro 1984 do George Orwell. Começa assim, “Era um dia frio e ensolarado de abril, e os relógios batiam treze horas. Winston Smith, o queixo fincado no peito numa tentativa de fugir ao vento impiedoso, esgueirou-se rápido pelas portas de vidro da Mansão Vitória; não, porém com rapidez suficiente para evitar que o acompanhasse uma onda de pó áspero.”

Leia o livro. Você notará que o sol serve para determinar a passagem do tempo, o sol de maio, o sol de junho, e contrapõe o ambiente de subsolo, escuro, fechado da história da opressão aos momentos de liberdade. Neste caso, o sol é necessário, quase um personagem, que serve para iluminar e escurecer as cenas. Noutro trecho diz o George Orwell “Lá fora, mesmo através da vidraça fechada, o mundo parecia frio. Na rua, pequenos rodamoinhos de vento levantavam em pequenas aspirais poeira e papéis rasgados, e embora o sol brilhasse e o céu fosse dum azul berrante, parecia não haver cor em coisa alguma, salvo nos cartazes pregados em toda parte. O bigodudo olhava de cada canto”.

Mas como água mole em pedra dura, tanto bate até que fura, ufa, um dos segredos é dizer coisas comuns com outras palavras, suas palavras.

O escritor Thomas Mann descreve personagens aos mínimos detalhes, usa longos parágrafos e até páginas, com os perfis fortes, tanto físicos como psicológicos, mas não é repetitivo e nem cansativo. Foge do comum.

Já o Gabriel Garcia Márquez é de um primor sutil. No conto O rastro do teu sangue na neve ele só nos diz que a noiva “tinha olhos de passarinho feliz” e que o noivo “usava um cachecol”. Mais nada. E os dois personagens ficam vivos em nossas mentes. Isso é arte.

E que dizer de A hora da estrela, de Clarice Lispector. Se você observar bem o romance é apenas a descrição de Macabéia. E aí está a força do livro. “Eu gosto tanto de parafuso e prego, e o senhor?”

Vi um filme na Sessão da Tarde, que esqueci o nome, em que um homem desce do avião e vai para a inspeção, o funcionário abre a mala e encontra objetos, e, no diálogo entre eles, nós ficamos sabendo tudo sobre o homem, de onde veio e o que veio fazer, a profissão, idade, até o time preferido pela camisa do clube. Uma beleza de roteiro na apresentação do personagem. Só depois ele sai do aeroporto, a história do filme começa, mas a gente já sabe tudo sobre o personagem. “É de sair lágrimas nos olhos”.

Quem teve a oportunidade de ler o livro Budapeste do mágico Chico Buarque deve ter estranhado que logo na primeira página ele usa e abusa destes lugares comuns. Começa brincando com o gerúndio “estou chegando quase”, e depois coloca na boca do narrador/personagem frases como “ficou meio triste” e “riso na boca”. Entenda que o Chico usa estes lugares comuns para mostrar as dificuldades de um brasileiro, em sua fala coloquial, em aprender línguas estrangeiras. É coisa do falar “cotidiano diário”. Tendeu?

Para o escritor ingênuo, revisão de um texto é a revisão gramatical. Acredita-se que todo revisor deve ser um bom professor de português. A escritora Gerusa Leal, ao contrário, necessita de outra forma de revisor e usou, numa entrevista em uma rádio, a expressão “um diretor de cena” para analisar seus contos antes da publicação.

Quando começar um conto escreva à vontade. Solte a imaginação. Mas depois faça a verdadeira revisão de um texto que é caçar e matar os lugares comuns, os pronomes repetitivos, as palavras desnecessárias, cacofonias e os miseráveis adjetivos. Leia em voz alta o que você escreveu e escute atentamente cada palavra, cada frase, vai perceber as distorções, rimas e absurdos como o título deste artigo.

Quando um aluno meu chega pra mim e diz que tem um conto de quatro páginas peço para que ele leia novamente, retire as palavras e frases desnecessárias e reduza o conto para duas páginas. Só depois me entregue. A cara feia do inicio vira cara de compreensão depois.

Para terminar, deixo aqui um exercício. Tente fazer uma correção e melhorar o texto a seguir.

“Ela era uma moça feia e ela ficou triste com os sentimentos na alma dela ao ver corpo do pai dela horrivelmente esmagado pela locomotiva vermelha e cruel assassina. Aí de tão triste ficou chorando lágrimas de sangue enquanto a tarde morria no horizonte escuro de nuvens feias e negras. Então, sentada com a bunda na cadeira, levantou-se correndo e ela deu um beijo na boca de sua mãe.”

Abraços.

2 thoughts on “Com minha boca beijei a boca dela”
  1. Quase não passo da primeira frase citada, de tanto rir, Fernando…rs Texto muito feliz. Concordamos, visceralmente, em quase tudo. Como dizia o mestre Nelson Rodrigues, toda unanimidade é burra. Portanto, discordo só do largar o livro de lado se já na abertura aparecem os clichês e lugares comuns. Como saber, sem ler pelo menos um terço do livro, se esses lugares comuns e clichês não têm função e se não é esse o efeito que o autor deseja? Mas isso, concordo, acontece em 0,0001% dos casos. em 99,0099% deles, é largar mesmo e não perder tempo com pseudo literatura 🙂 Vou fazer o exercício, viu? 🙂

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