Foto divulgação: Marcelo Tabach

Por Ney Anderson

Não é difícil encontrar pessoas que fazem da rua a própria moradia, gente que vagueia tentando encontrar algum fiapo de futuro, buscando sobreviver com os restos do que ficou do presente, principalmente com as sobras da esperança.

É dessa desesperança, do perigo da incerteza, da morte rondando, além de muitos outros aspectos, que é feito o romance Menos que um (Leya 2022), de Patrícia Melo. São vários elementos que fazem deste livro um retrato fidedigno do que é sobreviver dia após dia em um país que massacra os menos favorecidos.

O interessante na obra é o olhar de dentro para fora, em primeiro plano, a partir dos sentimentos dos personagens. A polifonia de vozes forma uma robusta e sólida unidade com todos os personagens periféricos, excluídos do status quo, no centro da vertiginosa narrativa da autora. Cada um deles tentando se salvar de maneiras distintas da miséria na qual estão afundados, em maior ou menor grau. Tendo a preocupação principal em continuarem de olhos abertos. Vivos.

São pessoas como o coveiro Douglas, que deixou de acreditar em Deu após tantas mortes provocadas por uma pandemia em curso no país. A rotina aterrorizante dele em enterrar vários corpos vitimados pelo vírus acaba sendo o seu calabouço sentimental. Está entregue à própria sorte, sobrevivente do caos que impera, sem conseguir pagar o aluguel e se alimentar dignamente. No meio disso, Douglas se vê envolvido na história da mulher, mãe de um jovem assassinado pela polícia, que dorme todos os dias sobre o túmulo do filho tentado vingar o rapaz morto de alguma forma.

Também conhecemos o personagem escritor sem teto, Iraquitan, que fica perambulando pelas ruas em busca de palavras nos jornais, nos livros e dicionários para a sua arte anárquica. Palavras diferentes para compor o seu curioso trabalho literário, na busca obsessiva por expressões novas. O cômico e o trágico andam juntos aqui, porque ele faz parte da mesma miséria que o rodeia e acaba se alimentando dela. É uma comédia dos horrores. O escritor mistura realidade e ficção nas suas anotações. A devoção dele, e a fuga, é a escrita. Por isso produz essa espécie de diário com todas as mazelas vistas ao longo do caminho. “O Brasil tem muitas formas de matar seus cidadãos”, ele escreve. O escritor, aliás, acaba tendo todos os documentos apreendidos e não consegue receber o auxílio do governo, mas uma editora acaba se interessando por ele e o tornando um fenômeno.

É a primeira coisa que se aprende na vida na rua. Manter-se em movimento. Parado, você é um alvo. Da Polícia Militar. Dos cidadãos de bem. Da prefeitura. Da Guarda Metropolitana. Dos grupos evangélicos. O sistema da rua faz você andar o dia todo.

Algumas outras histórias são bastante tristes, como a de Chilves, que por um ato de desatenção no passado foi o responsável pela morte do irmão recém-nascido no meio de um lixão. Algum tempo depois ele também perde a mãe, que nunca se recuperou da tragédia. Fatos que o marcam pela vida toda. Então ele acaba utilizando da revolta consigo mesmo, da violência muito forte, para viver.

Seno Chacoy, imigrante venezuelano, sai do próprio país de forma cruel, com ódio da Venezuela. Mas fica revoltado também com que o Brasil está se tornando, por conta da maldade e do descaso do poder público com as pessoas. Até os ricos estão saindo do país por conta da situação perigosa das ruas e da economia. Desolado pelo infortúnio, entregue à própria sorte, sem saber qual caminho seguir, ele vai perdendo tudo, aos poucos, e aprendendo a sobreviver com quase nada.

Dividida em três partes, o tom áspero da obra vai aumentando na medida em que os personagens vão sendo apresentados. É uma força estranha que os move, levando-os em direção à realidade do sofrimento, da revolta que pulsa, sobretudo porque eles parecem perdidos no meio da grande metrópole, literalmente, sem destino certo.

A aspereza da vida que eles levam, através do passado de sofrimento, refletido no presente cada vez mais cruel. São pessoas que tentam, de fato, sobreviver. Personagens representando a legião de desempregados sem expectativa de melhoria. É um livro com um olhar muito forte para o descaso, para os seus sofridos habitantes, ambientado em uma cidade que parece em ruínas, assim como os seus moradores menos favorecidos.

Menos que um retrata essas pessoas com esperança em dias melhores, apesar dos pesares. É o mundo cruel. Gente relegada ao descaso, em detrimento de estratégias de revitalização dos locais públicos onde ocupam e que por isso precisam catar materiais das ruas para tentar vender para a reciclagem. É o pesadelo real, com doses perfeitas de medo e horror sobre os perigos do endereço incerto. Além de tudo, o texto de Patrícia mostra sem meias palavras a truculência policial que tenta “limpar” essas pessoas que “poluem” a cidade e a sociedade estabelecida.

“Via como aquela gente ao seu redor se comportava. Era como se todos os xingamentos e insultos que lhe eram dirigidos, toda aquela sujeira, aquele fedor ácido, aqueles percevejos, aquela fuligem, aquele desprezo, aqueles cobertores imundos, aquele cheiro de sopa pobre, toda aquela sordidez da vida na rua entrassem na corrente sanguínea daquela gente. Daí para acreditar que você é de fato tão pobre quanto tudo ao seu redor, que sua história não vale porra nenhuma, que seus vínculos não existem, que sua humanidade é de um tipo inferior, que seu corpo é motivo de vergonha, e virar aquela criatura mansa, domesticada, como cachorros de rua, que não latem mais, nem arreganham os dentes, é só um passo. Menos, até. Menos que um”.

Autoridades que tentar tirar com métodos nada éticos os moradores das ruas. São pessoas que ocupam prédios desabitados, pensões insalubres, lutando por um teto. Estão criminalizadas por estarem abaixo da linha da pobre.

Tudo no livro é muito forte, duro e bastante ácido. Uma narrativa carregada de revolta dos personagens pelo Estado que não apenas os descrimina, mas criminaliza. A rua, como diz um dos personagens, é um lugar perigoso para quem não tem para onde ir. É também sobre gente inescrupulosa que tenta, a todo custo, se favorecer através dos sofrimentos alheios, como corretores imobiliários tentando comprar a troco de banana os imóveis ocupados pela população vulnerável para construção de complexos de luxo.

Os dilemas são muito bem trabalhados na obra. O que os personagens pensam, sentem, sofrem etc, é muito próximo do leitor. É a imersão na mente de todas as pessoas que compõe esse polifônico romance. A prosa de Patrícia Melo é, ao mesmo tempo, robusta e lírica, passando para o leitor em muitos momentos a sensação de ternura, pois as páginas estão recheadas de gente que sofre. A fila quilométrica na busca por um emprego no supermercado, por exemplo, nos causa dor.

Não é que o crack seja bom. A rua é que é ruim. Sobre o álcool, o pó, a maconha, o loló, a benzina foi bem claro: na rua, eles são nossas almofadas, nossa cama, nosso ventilador, nosso sofá e nossa televisão.

São cenas tristes demais, de um incrível poder de comoção. Impossível esquecer a atitude da personagem Jéssica em homenagem a amiga Glenda, travesti que acabara de ser assassinada pela PM, jogando sob o túmulo dela as lantejoulas que a outra tanto gostava.

A realidade das drogas está presente no enredo, a partir das mulheres drogadas e obrigadas a se prostituir para manter o vício. São imagens, aliás, potentes sobre a vida na prostituição. A rotina também dos que sucumbiram nos presídios.

Os personagens fazem reflexões potentes sobre a condição na qual estão inseridos. Colocados em situações-limites, e que por isso mesmo reagem, obviamente de forma grotesca algumas vezes, na mesma medida do tratamento que recebem. Esse é um livro escrito para os dias atuais. Inclusive, com ecos da pandemia.

Os diferentes pontos de vista se encaixam perfeitamente por conta da essência da narrativa. A autora interliga muito bem as histórias. Todas são muito interessantes, aliás. Eles, os personagens, pensam em outras formas de viver. Mas quais? Não existe alternativa concreta e muito menos perspectiva de futuro. “As pessoas na rua querem respostas rápidas. Elas têm pressa”, comenta uma personagem.

A falta de esperança em um país que abandona e maltrata os menos favorecidos e vulneráveis da sociedade. Gente, como diz um dos personagens, domesticado pela crueldade. Por isso nada mais fazem, apenas seguem para um futuro incerto de tudo. É o descaso que provoca ira, onde muitos deles tentam bater de frente e reagir ao sistema.

Difícil, depois de ler o livro, observar os moradores de rua da mesma forma. Essas pessoas que quase sempre passam despercebidas, por já estarem inseridas tristemente na rotina das metrópoles.

Menos que um é um livro que arrebata, entristece e amedronta na mesma proporção, por conta das muitas situações horrorosas que se assemelham ao que observamos diariamente. Acima de tudo, Menos que um nos conecta com a vida dessas pessoas ficcionais, nos aproximando inevitavelmente das vidas reais. Mostrar a situação de moradores de rua com todos os seus medos, dilemas e desesperança representa a grande força desta obra.

A reflexão que fica após a leitura é: o que resta quando não se tem nada?

Só mesmo quem passa por isso tem o poder de responder. Mas como bem resumiu um dos personagens, tratado como menos que um ser humano, “só o diabo sabe o que é viver na rua”.

Serviço: 

Menos que um (Editora Leya)

Autora: Patrícia Melo

Páginas: 368

Valor: R$ 42,90

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