Foto: Léo Aversa

Por Ney Anderson

Na comunicação das ruas, os fios invisíveis das histórias se conectam, mesmo sem estarem necessariamente ligados nas mesmas situações. Estão unidos justamente pela ideia da cidade em movimento, com os acontecimentos diários se desenrolando incessantemente, sem fim, provocados por habitantes que fazem a metrópole pulsar. Rua de Dentro (Ed. Record), novo livro de contos do escritor Marcelo Moutinho, é uma espécie de encruzilhada movimentada por onde trafegam todos os personagens que invariavelmente não percebemos, porque (inevitavelmente) também somos peças do mesmo quebra-cabeças.

Produzidos numa aparente simplicidade, de identificação imediata, o autor mostra, através de histórias curtas, diálogos rápidos e observações atentas, personagens que de tão comuns acabam passando despercebidos ao nosso olhar.

Todos os treze textos são ambientados em um Rio de Janeiro muito distante do cartão postal. “Purpurina”, que abre o livro, é sobre a vida de uma travesti, desde a sua gênese, ainda muito jovem, até a maneira de se colocar diante do mundo ativamente, tendo que lidar com o preconceito familiar, culminando no desfecho simbólico, quando ela, de forma emblemática, se reaproxima de quem a recriminou.

“Um dia qualquer” é a rotina alterada de um rapaz indo resolver a certidão de óbito da mãe. Sem choro, nem a aparente tristeza que este fato poderia causar. Apenas seguindo o curso natural da vida. “Memória da chuva” apresenta a divisão de classes. É incrível a história da amizade entre dois jovens de camadas sociais diferentes e as dúvidas dos pais do menino classe média alta em deixar o filho ir para o aniversário do amigo, morador de um dos vários morros que circundam a cidade. O endereço dele, por exemplo, mostra como esse abismo não é pura ficção, pois não está nem na localização do Google Maps.

“O campo visual do aplicativo termina próximo ao limite do asfalto”. Esse conto revela um preconceito entranhado, estrutural, mesmo com a (falsa) ideia do politicamente correto. Enquanto a preocupação dos pais é com a segurança do filho, ou a suposta falta dela, o menino nutre outro tipo de insegurança, que não tem nada a ver com o preconceito dos pais. Esse é um dos melhores contos do livro.

“Militante” é sobre a mulher que trabalha na campanha política distribuindo santinhos e balançando bandeiras dos candidatos, não por ideologia, mas para garantir um trocado no final da campanha. “Deus acima de todos. A verdade é que não costumo olhar para a bandeira, muito menos ler o que está escrito nela. Já agitei bandeira vermelha, amarela, azul, a de hoje é verde. Não tô nem aí. Essas palavras bonitas, de dicionário, são só palavras bonitas. Honestidade, justiça, honradez. Na bandeira do Brasil tem a frase ordem e progresso. Cadê? Palavra não paga fatura”, diz.

No conto “Ocorrência”, um furto no apartamento e a cena guardada nas histórias das personagens que estão se separando. Retrata a violência cotidiana, tratada como mais um caso corriqueiro. E o corriqueiro é uma marca dos contos do autor, também no livro anterior, Ferrugem, que se conecta totalmente com este novo.

Uma consulta ao dentista, que se transforma em suplício para a criança como medo da extração do dente, é o mote de “Fada do dente”. Já em “Comida a quilo”, Moutinho faz experimentação a partir da conversa entre funcionários de um supermercado, só com uso de vírgulas. No conto “Oxê”, a relação homoafetiva entre o jogador da seleção brasileira de futebol e um segurança dá a tônica do enfretamento que ele precisam lidar para não se tornarem relegados, e estigmatizados, pela descriminação.

Rua de Dentro traz também a história do relacionamento entre o ex-casal que compartilha a guarda da filha de forma amistosa, no conto “Cheiro”. E a prosaica conversa entre o taxista e o passageiro sobre amores e desafetos. E os caminhos tortos que ligam os dois desconhecidos no texto “Endless love”. O livro encerra com a violência urbana mais feroz do Rio de Janeiro , cobrando o seu preço dos mais pobres, no emocionante conto “Vanessa”, que termina de forma abrupta, assim como um tiro à queima-roupa.

Os contos de Marcelo Moutinho em Rua de Dentro têm algo muito próximo da crônica. Sobretudo a questão da cidade e dos personagens “invisíveis”. O interessante na antologia do autor é também a “dança” que os textos fazem, sem parar, seguindo um no outro e no outro, sempre passeando por vários lugares e histórias, se encaixando sutilmente, mostrando o “lado B” da cidade dita maravilhosa. Ou seria o lado “real” da dela?

A linguagem direta, simples e sem artificialidades que compõe os contos do livro, mostra que a reflexão maior do ser humano não é “quem somos, de onde viemos ou para onde vamos?”. Mas em entender que os personagens anônimos das cidades são aqueles que, como diz um dos narradores, estão invariavelmente na borda. Da natureza, dos limites, das interdições, das possibilidades, dos significados. Da alegria, talvez.

One thought on “Contos unidos pelo fio do anonimato”
  1. Gosto muito dos contos do Marcelo, eles tem, como você bem disse nesta resenha, uma linguagem simples, direta, mas que sempre nos leva a um fechamento inimaginável. Muito bom trazer Marcelo.

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