Na continuação das aulas do projeto Eu escritor, Fernando Farias comenta sobre o papel da criatividade na produção literária, o que para ele é essencial, pois é muito fácil saber escrever bem, com todos os pontos e vírgulas nos lugares certos. “E as ideias, a fantasia, a imaginação, os processos criativos da mente?”, provoca. Nesse texto novo ele utiliza como exemplo alguns roteiros dos filmes de Wood Allen e Steven Spielberg, dois dos cineastas mais importantes do mundo, que a princípio parecem simples, mas escondem um alto poder de sofisticação e criatividade. Aliás, já pensou em utilizar geladeiras como ideias para sua ficção?

Por Fernando Farias

Geladeira

Foto: reprodução internet

Pense neste conselho do poeta Pablo Neruda. “Escrever é fácil. Você começa com uma letra maiúscula e termina com um ponto. No meio você coloca as ideias”.

Aprendi que numa oficina literária você aprende de tudo sobre as técnicas de escrever. Aprende a ler. Criar personagens, cenas e cenários, diálogos e muita coisa boa.

E as ideias, a fantasia, a imaginação, os processos criativos da mente? Como criar uma boa história em cima de um tema incomum de forma revolucionária e tão inédita que ninguém neste planeta azul pensou ainda. Muita gente já fez isso.

Talvez seja isso que diferencia os escritores de escritores. Escrever bem é fácil, ser bom de gramática, ortografia e dominar as figuras de linguagem é acessível a qualquer pessoa que se dedique ao estudo com afinco.

Mas eis o pânico do escritor diante da página em branco. O que escrever? Como ter uma boa ideia para uma história?

Basta você orar pedindo inspiração ao seu anjo da guarda ou será melhor deixar a oficina literária de lado e fazer antes um curso de desenvolvimento da criatividade?

Quando Machado de Assis escreveu Memórias Póstumas de Brás Cubas e optou por inverter a narrativa contando todo romance narrado pelo defunto, ele usa a criatividade e sacode a narrativa. Esta foi a grande sacada. No meio, ele colocou uma história.

E que não dizer do roteiro de filmes de Wood Allen como A rosa púrpura do Cairo ? Onde uma garçonete vê seu herói sair da tela do cinema e lhe oferecer uma nova vida. Ou em Zelig, um filme narrado como se fosse um velho documentário  de um personagem que, como um camaleão, adota o mesmo físico  comportamento e inteligência das pessoas as quais ele se aproxima. Além de outras grandes sacadas como Sonhos de uma noite de verão, A poderosa Afrodite, e o belo Meia Noite em Paris. Assistimos a estes filmes e nos perguntamos: “por que eu não pensei nisso antes”?

A tempestade de ideias, uma técnica criativa, talvez seja uma boa sugestão. Do tipo encontre 300 frases para a palavra geladeira e depois tente criar a história tendo a geladeira como personagem principal.

A questão é que pensar dá trabalho, cansa, sofre. E é neste momento que muita gente desiste. Uma boa história só surge depois de muito trabalho, milhares de pensamentos e anotações. As primeiras ideias e impressões não ficam

E depois vem outra questão. Como contar uma história simples, comum, já usada antes, de forma criativa? Um bom exercício é tentar escrever 50 finais diferentes para o Romeu e Julieta. As novelas da televisão fazem isso há anos e vem dando certo.

Para se escrever sobre as banalidades mais simples da vida com arte e beleza, vale ler, reler e estudar mestres como o Ítalo Calvino e seu livro Palomar, onde em 27 histórias trata de coisas do cotidiano como observar duas tartarugas transando, uma corrida de girafas, fazer as compras na fila num supermercado e como se comportar diante de uma mulher com seios nus. É bom ler como se faz para subir uma escada seguindo os conselhos de Júlio Cortázar. Como imaginar crianças que navegam de barco na luz dentro um quarto, ou aquela noiva que morre ao se furar num espinho de uma rosa, e o que acontece quando o carro de uma mulher quebra numa estrada numa noite de chuvas, e só porque ela precisa telefonar para avisar ao marido fica presa num asilo de loucos por vários anos. Estão nos 12 Contos Peregrinos de Gabriel Garcia Marquez. São magníficos.

É aquela coisa de ver algo que todo mundo já viu e pensar o que ninguém pensou. Os assuntos estão em volta da gente pedindo para serem narrados. Tem um chinelo velho debaixo da cama te dizendo “me narra, me conta, me pensa”.

O criativo escritor Marcelino Freire me contou, espantado, que uma amiga dele disse que estava sem “inspiração” para escrever. Estava com a mãe com câncer internada num hospital, se separando do marido, a filha tinha revelado que era lésbica, o filho envolvido em drogas, morreu o cachorro, a empregada a tinha denunciado na justiça, estava ajudando uma amiga que tinha tentado suicídio, bateu com o carro. Tudo isso a impedia de encontrar temas para escrever um conto.  O nome disso é miopia.

Para mim o melhor filme de Steven Spielberg ainda continua sendo o primeiro ele fez, Encurralado, de 1971, com um só personagem o tempo todo dirigindo um carro numa estrada e perseguido por um caminhão. Mais nada. É um filme muito mais criativo do que ET, Contatos Imediatos ou Tubarão.

O mestre Raimundo Carrero nos mostra que para se começar a escrever uma história “tudo surge num impulso na mente”. Eu mesmo já disse numa entrevista que eu tinha muita imaginação, sonhava acordado, e resolvi ganhar dinheiro com isso, escrevendo. Ou que é impossível se masturbar e escrever sem fantasias na cabeça.

Sem medos, sem pecados, sem razão. Este impulso é uma torneira que abre a imaginação. É uma alquimia, “é brincadeira de criança, é trabalho de dona de casa, é paciência de pescador”, como bem disse Louis Pauwels.  Raciocínio lógico é coisa de matemático.

Um escritor não escreve com lápis, caneta, teclado, papel ou caderninhos. Escreve com a mente. Uma mente criativa é como um paquiderme escarlate dentro de uma bolinha de sabão flutuando de patins num berçário de flores carnívoras em Marte.

 

 

 

7 thoughts on “Criatividade em 300 geladeiras”
  1. Leio dos os textos das aulas do projeto Eu escritor, adoro todos.
    Acho que já vivo sonhando acordada, mas só agora comecei a escrever o que sonho. Obrigada!

  2. No filme, Encontrando Forester, Sean Connery, interpreta um grande escritor que orienta um jovem promissor e neste trecho, eles falam sobre isso que o Fernando comentou: escrever no impulso, deixar a mente livre, e só depois usar as técnicas.

    Filme imperdível para quem gosta de literatura:

    http://www.youtube.com/watch?v=IRhggJGJEb8

    O som está meio baixo, mas em síntese é o seguinte:
    O escritor manda o jovem se sentar à máquina de escrever e diz
    – então escreva… Algum problema?
    – Não, eu só estou Pensando
    – Não pense, isso acontecerá depois.
    … você escreve o primeiro rascunho com o coração.
    …depois você o reescreve com a cabeça.

  3. Belo texto para reflexão. Levou-me a reforçar meu pensamento sobre escrita: tem que ser mentiroso e todo mundo achar que você é um vagabundo que passa o dia todo sentado, lendo, escrevendo pensando e vice-versa e versa viça. Abraçamigo, seu vagabundo profissional!

  4. Muito bom: “Para se escrever sobre as banalidades mais simples da vida com arte e beleza, vale ler, reler e estudar mestres como o Ítalo Calvino e seu livro Palomar, ” . Ler muito! Afinal, arte não é só originalidade e invenção, “o escritor é um um químico da língua”, como afirma Alberto da Cunha Melo, ou um “combinador”, conforme Roland Barthes. Sem ler, como fazer essa química, combinar o quê?
    Vou voltar sempre. Sucesso sempre e mais.

  5. Parabéns,Fernando.Muito bom o texto.Estímulo pra gente ficar “mió das idéia”!!!
    E,então,continuar no exercício infindo,escrever e escrever.

  6. Impressionante, suas palavras são soltas de forma simples de acordo com o que vivemos, isso mostra a qualidade do escritor que tu é.
    Realmente o escritor e o poeta que guardamos em nós, ele mora na mente e não no coração… Sucesso!!!!!!!!!!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *