Daniel Galera foto: Renato Parada / Divulgacaocultura

Foto: Renato Parada

Não foi à toa que o novo livro do escritor Daniel Galera, Barba ensopada de sangue (Cia das Letras, R$ 39,50) , tenha feito tanto barulho no mercado editorial. Sem dúvida é um romance que superou as expectativas dos leitores e, talvez, do próprio autor. Ficou bem claro na leitura do livro que este é um trabalho de afirmação de uma obra literária que está sendo criada desde 2001, quando Galera lançou, por um selo independente, Dentes guardados. Seguiram-se outros, agora pela chancela da Companhia das Letras, como Até o dia em que o cão morreu (2001), que foi adaptado para o cinema em 2007; Mãos de cavalo (2006); Cordilheira (2008), vencedor do prêmio Machado de Assis e o álbum em quadrinhos Cachalote (2010).

No entanto a impressão que ficou com a leitura de Barba ensopada, foi a capacidade do autor em se superar, aprendendo com os possíveis erros cometidos durante a carreira (algo normal em qualquer profissão), que, naturalmente, foram importantes para o aprendizado até aqui. O livrão (são 423 páginas) foi tão bem construído que o mínimo pensamento negativo para não ler um romance com essa quantidade de páginas é afastado logo nas linhas iniciais. Isso por que, logo no começo ele lança um mistério para o protagonista, junto com o leitor, ir desvendando. Um artifício muito utilizado nos romances policiais.

O protagonista, que tem uma peculiar condição neurológica, uma doença chamada prosopagnosia (incapacidade de lembrar e reconhecer rostos), se muda para uma cidade no litoral de Santa Catarina (Garopaba), para tentar desvendar o que de fato aconteceu com o avô, Gaudério, vítima de um suposto assassinato muitos anos antes, mas que nunca teve o corpo encontrado. Nessa cidade, ele consegue um emprego em um clube local para ensinar natação, enquanto tenta saber mais coisas sobre o avô. Seguido pela cachorra Beta, que herdou do pai pouco tempo antes depois do suicídio dele, percorre vários lugares em busca de respostas, mas nunca consegue, o avô é assunto proibido no local, uma espécie de lenda, e o próprio protagonista percebe estar em constante observação da população.

Essa história principal é interligada com outras do personagem, como a relação com a ex-mulher que o deixou para casar com o irmão. Aqui outra novidade, ele resolveu contar essa parte através de notas de rodapé, algo bastante arriscado, mas que também funcionou perfeitamente. Até ajudou para dar uma dimensão maior e um corpo estrutural ao enredo (não apenas alguém vindo do nada para lugar nenhum). Um personagem com começo, meio e fim, com todos os conflitos necessários para a unidade do romance.  No meio dessa busca ele se relaciona com pessoas, faz bastante sexo com alguns mulheres (algo comum nos livros do Galera), e nos passa a sensação de como é a vida na praia. Talvez o escritor tenha optado por uma figura central com essa doença rara, justamente para tentar descrever esses “cheiros” e “sons” das pessoas, tão próprios de uma temporada no litoral. Descrevendo também a paisagem, inserindo o leitor quase “dentro” do livro, como um romance em 3D e utilizando muitas metáforas. Veja:

“A baía está serena, roçada por um vento sul fraco que faz as ondas pequenas quebrarem com cristas finas e quase sem espuma sobre uma superfície lisa e laminada. A água muito fria e transparente molha sua barriga e ele ergue os braços em reflexo… Em dias assim o mar faz ressuscitar nele uma visão infantil que miniaturizava tudo. Ondas pequenas avistadas com olhos rentes à superfície são maremotos mitológicos quebrando em sua cabeça. A areia sinuosa do fundo é a maquete de um grande deserto onde a carcaça quitinosa de um siri evoca a ossada de um colosso extinto muitas eras atrás. Raspando o peito na areia, de fôlego preso e olhos bem abertos, vê a paisagem de dunas diminutas se estendendo ao redor até sumir na opacidade da água esverdeada. A visão é cristalina e silenciosa e mais acima o sol se refrata na superfície em lascas brancas crepitando numa revoada inapreensível de padrões geométricos”.

E ainda:

“Vê a ilha do Coral na linha do horizonte, com seu farol branco quase indistinguível à distância, e bem mais ao longe o sul da ilha de Santa Catarina com as montanhas verdes desbotadas se dissolvendo na atmosfera… Vê a fileira dos galpões dos pescadores encarando as ondas com suas frentes de madeira cinzenta ou pintada em tons suaves, o calçadão com pousadas e restaurantes, o bosque de pínus do camping à beira-mar sendo alvejado por andorinhas solitárias que surgem de todas as direções, o morrinho do Siriú se estendendo por alguns quilômetros até os costões rochosos que escondem a tranquila praia da Gamboa. Um mundo dourado, azul e verde”.

Barba ensopada de sangue

Na ficção o importante é não “entregar” demais a história, e sim mostrar o que acontece, através desses cenários mostrados acima, por exemplo, que servem como um grande pano de fundo para a verdadeira intenção. Esse tipo de escolha deixa o texto um pouco mais vivo e com várias opções narrativas. O livro é dividido em três partes que existem exatamente para identificar as transformações do protagonista.  Um detalhe muito importante foi o tratamento dado aos diálogos dos vários personagens que trafegam pela vida dele, cada um com uma voz própria dentro do contexto do romance.

Galera vai intercalando à rotina do protagonista na praia, com as tentativas de descobrir a verdade sobre o avô. Em determinado momento, a história vai se misturando e nos levando para um determinado ponto, que ao final, quando tudo faz pensar que se chegou à ideia principal do romance (o término na busca por esse avô), chega a ser frustrante pela saída que o autor optou. Mas só isso frustra no livro, todo o resto é de uma entrega plausível à sinceridade no romance, mesmo em se tratando de ficção.

Daniel Galera já passou pelas oficinas literárias de Assis Brasil, e está se firmando como um escritor de variados recursos e capacidade inventiva grande. As qualidades que possui elevaram seu nome como um dos principais ficcionistas contemporâneos do país. Faz parte da revista inglesa Granta, lançada ano passado, como um dos jovens talentos em língua portuguesa. A atual editora dele, Companhia das Letras, deu um tratamento digno aos autores internacionais, lançando o romance em três cores diferentes e com blurbs, pequenos textos de críticos ou escritores famosos, nesse caso com elogios de Gonçalo M. Tavares e Ricardo Piglia.

Uma coisa é certa, Daniel Galera já está estabelecido, mas vai ser muito difícil para o autor lançar outro livro depois desse Barba ensopada de sangue. Um livro grande no tamanho, na qualidade e na ousadia.

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