Por Ney Anderson
O escritor angolano Ondjaki, pseudônimo de Ndalu de Almeida, um dos convidados da Fliporto deste ano, é um autor bastante produtivo com 19 livros publicados e 15 prêmios no currículo, entre eles, o Jabuti, no Brasil, e o José Saramago, em Portugal. A obra de Ondjaki passeia tranquilamente pela poesia, romance, conto e teatro, o que comprova a versatilidade desse jovem autor de apenas 37 anos de idade, que também é artista plástico e cineasta. Nessa conversa exclusiva com o Angústia Criadora, Ondjaki falou sobre sua infância em Angola, literatura brasileira, a relação com os prêmios que ganhou, a admiração que tem com as telenovelas, e ainda comentou alguns aspectos de suas obras recentes.
Acho que as leituras nos afectam sempre, como pessoas ou como escritores.
ANGÚSTIA CRIADORA – Você é um dos autores africanos mais destacados, principalmente no Brasil. Sua literatura carrega bastante a influência de Angola, onde nasceu e viveu. Acredita que essa preocupação, em falar do seu povo através da literatura e de outras expressões, deve ser o compromisso central do artista?
Ondjaki – Não. Acho que se deve fazer literatura, a partir de qualquer boa ideia e/ou convicção do autor. Talvez, se houver um compromisso, esse compromisso deva ser com a literatura ou com a escrita. Mas os autores têm as suas convicções sejam estéticas ou políticas.
AC – Angola sempre está presente na sua obra. Você acha que falar da própria aldeia para falar do mundo inteiro, como afirmou Tolstói, é uma ideia que leva na sua obra?
Ondjaki – Não acho que Angola esteja sempre presente. Há vários livros de contos, poesia ou infantis meus, onde Angola não está presente. Pelo menos não de modo evidente. Portanto, creio que conto estórias com ou sem Angola como pano de fundo.
AC – Você já falou que a própria realidade de Luanda escreve a história e que os escritores tentam entender essa história para poder transmiti-la da melhor forma. Qual a realidade de Luanda que você vem buscando conhecer desde o princípio de sua atividade?
Ondjaki – Não sei se busco conhecer, apenas procuro contar um pouco. Cada autor conta um pouco do que imaginou, viveu ou sentiu. Esses “todos poucos” fazem a literatura angolana.
AC- Como define quando a história que tem para contar vai virar um conto, romance ou poema?
Ondjaki – Normalmente, ou espero ou começo a trabalhar. E a própria estória ajuda a definir o formato. Não tenho fórmulas, nem gostaria de as ter.
AC- Escrever para crianças deve ser um exercício completamente diferente de outros textos. Conte como é o processo para produzir literatura para esse público.
Ondjaki – É uma descoberta. Para mim, é uma descoberta mais difícil. Porque não gosto da ideia de saber de antemão que estou ou vou escrever para crianças, mas quando o processo acontece, pelo conteúdo e pelas palavras, há um certo auto-cuidado com esse material. Mas penso que é uma boa ideia só descobrir no fim. E outra boa ideia é não pensar ou não querer que o texto seja para uma faixa etária específica.
AC – Você é um autor que já morou em alguns países da Europa e agora está morando no Brasil. O aspecto cultural nos locais onde vive influência, de alguma forma, na sua produção literária?
Ondjaki – Acho que as viagens influenciam os seres humanos que somos. E isso possivelmente chega à escrita. Não sei bem precisar em que formato chega, mas é possível que sim. Espero que influencie mais a sensibilidade que os formatos.
AC – Seu livro mais recente publicado no Brasil é “O céu não sabe dançar sozinho”, trata um pouco desse “trânsito”, da convivência com outros povos, através de contos ambientados em Buenos Aires, Budapeste, Madrid, Macau, Praga, entre outros. O livro fala, sobretudo, dos protagonistas que sempre estão de passagem por esses lugares. Você se sente da mesma forma, sempre de “passagem”?
Ondjaki – “Sempre” é uma palavra muito extensa. Faço passagens breves por muitos lugares, e faço passagens mais demoradas por outros. Portanto, não me sinto “sempre” em trânsito. E os títulos dos contos, na sua maioria, não correspondem às cidades em que acontecem. Fiz uma pequena brincadeira com isso. Eu nunca estive em Nairobi, por exemplo. Mas gostaria de ter estado.
AC- Alguns contos são narrados por escritores que, aparentemente, podem ser você mesmo. Quanto de autobiografia colocou nesse livro?
Ondjaki – Muito pouco. Autobiografia quase verdadeira, só no último. O resto são as pessoas do mundo, que somos nós todos, que podemos ser nós todos. Qualquer pele, qualquer viagem, poderia ter acontecido a todos nós. Ou não.
AC – Aliás, nesse livro existe uma oralidade muito grande, de quem quer contar uma história, ou várias histórias, sem se preocupar muito com cenas e cenários, apesar de eles estarão lá na fala dos personagens. Como conseguiu esse equilíbrio entre a oralidade dos personagens e os lugares descritos?
Ondjaki – Não sei dizer. Nem sabia que tinha conseguido esse equilíbrio. Acho que são ligeiramente diversificados esses contos, alguns estão mais presos à conversa, outros estão mais presos a quase nada. Um momento. Uma fotografia. Um desejo. Um mistério.
AC – O ator Lima Duarte virou personagem no conto Laranjeiras, ambientado no Rio de Janeiro. Não apenas ele, mas dois de seus personagens mais famosos na TV: Sinhozinho Malta e Zeca Diabo. No texto, o narrador não sabe com qual dos “três” está falando tamanha a euforia. O conto tem uma memória afetiva bastante forte, de alguém apaixonado por novelas. É isso mesmo? Como surgiu essa história?
Ondjaki – Sou apaixonado por “algumas” telenovelas brasileiras. As mais antigas. As que me marcaram na infância. Sobretudo os casos de “O Bem Amado”, “Roque Santeiro”, “Pedra sobre Pedra” e “Fera ferida”, são novelas que me falam ao coração. O resto é literatura e sonho.
AC – Houve um encontro real com o Lima Duarte?
Ondjaki – Será que houve?…
AC – Um de seus livros mais conhecidos, o “Bom dia, camaradas”, trata da lembrança de um menino durante a guerra civil angolana, que durou décadas. Você era uma criança quando estourou a guerra. Esse livro, sem dúvida, deve retratar através de uma “realidade ficcional”, suas próprias lembranças. Você acredita que ainda tem muito a falar sobre esse tema? É um assunto inesgotável?
Ondjaki – Eu penso que esse livro é sobretudo sobre infância e ternura. Eu não sei dizer, neste momento da minha vida, quando é que um tema há-de voltar aos meus livros ou quando se torna inesgotável. Não sei dizer.
AC – O romance que lançou em 2013, “Os Transparentes”, venceu o prêmio José Saramago, de Portugal. Além desse, você já ganhou o Jabuti no Brasil, com o juvenil Avó Dezanove e o Segredo do Soviético, e algumas outras honrarias. Como observa essa questão do escritor que recebe bastante prêmios? É preciso saber lidar com essa “fama”?
Ondjaki – Não demoro muito tempo a pensar sobre essa coisa dos prémios. É preciso escrever. É isso que faz um escritor. Se quiser. Se o sentir. Não como obrigação. Portanto, pode ser que ganhe algum prémio ou pode bem ser que não ganhe nenhum. É bom estar preparado para as duas coisas e ir escrevendo. A palavra “fama” fica um pouco feia perto da palavra “literatura”.
AC – E sobre os eventos de literatura, como faz para que essas viagens não afetem seu trabalho, já que é um autor que produz bastante?
Ondjaki – Uma vez mais, não tenho fórmulas. Faço como todos fazem, vou vivendo.
AC – Como é a literatura que se produz em Angola? Quem, de fato, está se destacando e merece ser lido, além de você?
Ondjaki – Eu não sei resumir a “literatura que se produz em Angola”. Porque ela é diversificada e plural, e com altos e baixos. Também não relaciono o “destaque” com o “merecimento de ser lido”, acho que qualquer autor pode ser lido e depois será julgado ou não pelo público e pela crítica. Mas se me pergunta que nomes fazem falta, há vários, e aqui cito pessoas que estão já no outro mundo e outras que ainda estão neste nosso mundo: Alda Lara, Agostinho Neto, António Jacinto, Viriato da Cruz, Henrique Abranches, David Mestre, Manuel Rui, Maria Alexandre Dáskalos, Arlindo Barbeitos estarem publicados. E outros como Carlos Ferreira, João Maimona, Lopito Feijoó, José Luís Mendonça, Nok Nogueira. A grande ausência é a de um autor que merecia ter no Brasil publicada a sua obra completa: Ruy Duarte de Carvalho (penso que não tem a sua poesia publicada no Brasil). Estes são alguns nomes. Há mais.
AC – Depois de tanto tempo no Brasil, você já se considera um leitor da literatura contemporânea do país? Quais autores tem lido e admirado ultimamente?
Ondjaki – Leio autores brasileiros há mais de vinte anos. Não tem nada a ver com o tempo que passo no Brasil. Para falar de algo absolutamente recente, gostaria de destacar o livro “O herói está de folga” (contos), do Dênisson Padilha Filho. Ainda não terminei e já estou completamente fascinado. Este autor escreve contos “à moda antiga”, isto é, sem facilitismos. É duro onde tem que ser duro. E escreve muitíssimo bem, de modo cuidado e incisivo, o que também já se pode considerar como algo à moda antiga…
AC – Você já disse que Graciliano Ramos foi uma grande influência na sua vida e obra. Com certeza muitos outros autores também tiverem esse papel na sua carreira. Como trabalha a questão da influência nos seus livros?
Ondjaki – Não a trabalho. Leio-os, tento absorver um pouco, e depois volto à minha vida e à minha escrita. Simplesmente acho que as leituras nos afectam sempre, como pessoas ou como escritores.
AC – Os autores brasileiros estão sendo traduzidos para diversas línguas com o incentivo do governo, através da Biblioteca Nacional. Mas parece que a recepção fora do país não está sendo tão grande assim, salvo uma ou outra exceção. Você acha que a literatura brasileira ainda vai demorar muito para ser reconhecida em outros países?
Ondjaki – Não sou especialista, mas acho que independentemente da recepção, é bastante óbvia a elevada qualidade da literatura brasileira. Se outros países ou pessoas demoram para ver ou usufruir disso, o problema é deles.
AC – Não acha, por exemplo, que o Brasil já deveria ter ganho o prêmio Nobel de Literatura?
Ondjaki – Acho isso desde que nasci.
AC – Você além de escritor é cineasta, artista plástico, poeta e já teve algumas atuações no teatro. O que essas artes podem aprender entre si?
Ondjaki – Eu considero-me apenas um contador de estórias. Tudo o que pouco faço em outros campos é um modo de voltar depois à escrita com algumas mais na minha bagagem.
AC – Sua mesa na Fliporto vai tratar do tema: Roteiro, narrativas e imagens: as técnicas do cinema e da literatura: aproximações e distanciamentos. Pode adiantar alguma coisa sobre o assunto?
Ondjaki – Raras vezes sei sobre o que vou falar. Mas penso que é bom ir aberto ao diálogo. Como partilho a mesa com o Mutarelli, e como admiro o pouco do trabalho dele que conheço, vou para a mesa mais para ouvir do que para falar.
AC – A literatura é a arte mais completa que existe?
Ondjaki – E quem nasceu primeiro: o voo ou a asa?
AC – Se fosse para você escolher apenas uma frase, palavra ou trecho de livro, qual escolheria?
Ondjaki – Eu não sou essa pessoa de escolher apenas uma frase, peço que me desculpe por isso. Eu sou uma pessoa de me deitar em várias frases, em vários sonhos, em vários futuros. Para limites já bastam os poucos anos que nos dão aqui na Terra entre amigos e afectos.