Foto: divulgação
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Por Ney Anderson

Já disseram que a verdadeira poesia está naquilo que existe de mais simples e sincero. Basta, contudo, que o observador tenha a capacidade de extrair algum sentido em coisas aparentemente banais e corriqueiras. É o que acontece no excelente livro O vento que arrasa (Cosac Naify), da escritora argentina Selva Almada. A história se passa em pouco mais de um dia e tem como cenário uma oficina mecânica no Chaco, no norte da Argentina, onde estão quatro grandes personagens: o reverendo Pearson, a filha adolescente Leni, o mecânico Gringo Brauer e o filho Tapioca, de apenas dezesseis anos. Esse encontro surge depois que o carro do reverendo quebra na estrada e é rebocado até o local de trabalho de Brauer. Chegando lá o reverendo Pearson vê em Tapioca o ideal de fé que ele busca nas suas andanças pregando o nome de Cristo. Segundo Pearson, o jovem pode ser alguém muito maior e mais importante do que ele mesmo, pois se trata de um coração puro, sem pecado. Isso culmina num confronto direto entre o reverendo e Brauer, que se vê ameaçado pelo desconhecido.

O reverendo e a filha não têm endereço fixo, pois ele é um missionário, passa a vida na estrada. Existe a presença da religião, mas não de uma maneira autoritária e caricata. Na verdade a religião é apenas o pano de fundo para a história fluir. A novela mostra famílias destroçadas, que vivem para o hoje e para um futuro ideal, como prega o reverendo. O cenário é cruel, triste, que remete à solidão de cada um. Não é por acaso que Almada resolveu levar a história para o interior argentino, fugindo dos aspectos puramente urbanos que poderiam estragar a proposta do livro. O vento…é carregado de nuances, e a fé (não apenas religiosa) tem um aspecto pontual na obra. O Gringo, por exemplo, com toda a sua brutalidade, carrega sua fé, que no caso dele é no trabalho que executa com determinação todos os dias.

As duas famílias, ainda que diferentes, têm algo em comum, passaram por provações na vida. Tapioca, por exemplo, foi entregue pela mãe ao mecânico, por não ter condições de criá-lo; Leni viu sua mãe ser deixada para trás pelo pai (não se sabe muito bem o motivo); Brauer na aparente tranquilidade carrega uma série de sentimentos e lembranças de um passado feliz. O reverendo talvez seja o de maior inquietação, justamente por sua posição como pregador. É bem interessante esse painel de personagens, pois vemos na aparente calma corações machucados e magoados com algumas questões. O convívio entre eles tem uma razão de ser, não apenas por conta do carro quebrado, que ultrapassa o sentido racional.

É preciso algum tempo para entender o sucesso que Selva Almada está fazendo com O vento que arrasa. É possível, depois de uma leitura atenta, compreender a força narrativa que ela conseguiu criar, mesmo quando nada parece acontecer de fato. O narrador proporciona imagens diretas e sem rodeios, de um realismo impressionante. Como forma de tentar sair um pouco do cenário da oficina, Selva recorre aos flashbacks para contar a história das quatro pessoas. Mesmo essas digressões não são muito extensas. Até pelo fato do livro ter sido pensado inicialmente como um conjunto de contos, conforme a própria autora falou em debate no Recife. Mas o poder de síntese é incrível, tudo o que importa está lá. Essa economia de palavras e ações, com personagens silenciosos ao extremo (com exceção do reverendo) causa angústia e desconforto no leitor. No entanto, esse não-lugar, no meio do nada, diz muito sobre o livro. É o cenário ideal para o incômodo que os personagens carregam dentro de si.

Existe uma tensão por toda a obra, desde o início, que vai aumentando a cada nova página. Parece que alguma coisa impactante vai acontecer a qualquer momento. A filha do reverendo, por exemplo, não acredita muito nos propósitos do pai. Tapioca vive para servir, consertando os carros, porque essa é a única opção disponível, mas quando esses novos clientes chegam a mudança é iminente. É tudo muito delicado na novela, com palavras certas para todos os momentos.

O final não chega a ser surpreendente, mas permanece muito tempo depois da leitura. Esse é um belo exemplo de um texto ficcional que pode ser chamado de literatura em todos os sentidos, pois carrega nos pequenos gestos e detalhes algo muito maior, que ultrapassa o sentido da arte. A começar pelo título metaforicamente perfeito. Não se pode ver o vento, mas ele está lá, com toda a sua energia, em menor ou maior intensidade. O vento que não apenas destrói, mas principalmente modifica cenários, paisagens e tira do lugar aqueles que não estão acostumados com a sua força.

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