Nesta entrevista exclusiva ao jornalista Ney Anderson, editor do ANGÚSTIA CRIADORA, o escritor angolano José Eduardo Agualusa, um dos nomes mais celebrados da língua portuguesa, fala sobre o seu novo romance, Os vivos e os outros (Editora Tusquets), mas também sobre diversos outros assuntos, como a capacidade que a literatura tem de mudar o mundo e de alguns personagens reais e inverossímeis, que a ficção não teria facilidade em dar conta de criá-los, como Donald Trump e Jair Bolsonaro. O autor publicou até agora 13 romances, e diversas coletâneas de contos e de poesia. Os seus livros estão traduzidos em mais de 30 idiomas. Um dos seus romances, “O Vendedor de Passados”, ganhou o Independent Foreign Fiction Prize, em 2007. “Teoria Geral do Esquecimento” foi finalista do Man Booker International, em 2016, e vencedor do International Dublin Literary Award, em 2017.

Ao final da entrevista, leia a análise da obra.

 

“Escritores teriam dificuldade em inventar personagens como Trump ou Bolsonaro”

Foto: divulgação

ANGÚSTIA CRIADORA-  A trama de Os vivos e os outros é centrada na ideia de que os escritores podem mudar o mundo através da escrita dos seus livros, a partir do pensamento que vai sendo expandido em cada leitor. A literatura tem, de fato, este poder?

JOSÉ EDUARDO AGUALUSA – Tem, obviamente. No caso de Angola, o meu país, o movimento nacionalista, que organizou com sucesso a resistência contra o colonialismo português, foi precedido por um movimento literário. Algo semelhante aconteceu em Moçambique, em Cabo Verde, no Senegal e em muitos outros países. A Revolução de Outubro, para citar apenas um outro exemplo, também foi anunciada e preparada pela literatura.

ANGÚSTIA CRIADORA –  O enredo fala de um isolamento forçado por conta de uma situação adversa. Você escreveu este livro em qual momento? Até que ponto a ficção é capaz de antever o futuro?

JOSÉ EDUARDO AGUALUSA – Terminei de escrever o romance em novembro de 2019. Não é o caso deste romance, mas vários outros foram capazes de prever a epidemia, por uma estirpe de coronavírus, que enfrentamos agora. Estou a lembrar-me do romance “Fever”, do romancista sul-africano Deon Meyer, publicado em 2017. Assumindo que o tempo não é linear, como defende a física quântica, então talvez alguns escritores tenham memórias de eventos traumáticos que estão acontecendo agora no futuro. Este “agora no futuro” é assim mesmo. Agora no futuro.

ANGÚSTIA CRIADORA –  Alguns personagens confrontam-se com as próprias ideias, muitas vezes por não conseguirem escrever, literalmente, o que vem à cabeça. A literatura, como na vida, é uma forma de incompletude, onde se busca alcançar o inalcançável na maioria das vezes?

JOSÉ EDUARDO AGUALUSA –  Sim, escrever ficção ajuda-me a compreender o mundo. Enquanto escrevo visito territórios cuja existência ignorava.

ANGÚSTIA CRIADORA –  Uma questão que muitos personagens de Os vivos os outros falam é de não se reconhecerem nos livros antigos. Você se reconhece nos seus livros anteriores, ou neles, já estão outros?

JOSÉ EDUARDO AGUALUSA – Mais ou menos. Algumas vezes não. Creio que já existe muito da pessoa que sou hoje no meu primeiro romance, “A Conjura”. Outros livros são o desenvolvimento desse. Mas por vezes, ao reler textos antigos, não me reconheço neles.

ANGÚSTIA CRIADORA –  Escrever essa história foi uma forma que você encontrou de retratar de forma espirituosa o mundo por trás da aparente perfeição dos escritores?

JOSÉ EDUARDO AGUALUSA – Eu gosto da ironia. Gosto da sátira. Afinal de contas, venho do Eça de Queirós. Diverti-me muito a escrever esse romance. Mas você acha mesmo que existe uma “aparente perfeição” nos escritores? Isso, nunca achei. Gosto muito de escritores que não queria ter como amigos. Borges, por exemplo. Ou Hemingway, um bêbado mulherengo, que amava armas e touradas.

ANGÚSTIA CRIADORA-  Aliás, você construiu os escritores como uma boa dose de egocentrismo e desavenças entre eles. O escritor, além de se confrontar com as próprias ideias, precisa aprender também a domar o ego? 

JOSÉ EDUARDO AGUALUSA – Artistas em geral são egocêntricos. Se você lida com artistas sabe disso.

ANGÚSTIA CRIADORA –  Alguns personagens do livro, inclusive, dizem que a crítica pode envenenar o trabalho artístico. Já aconteceu isso na sua carreira? Como lidou?

JOSÉ EDUARDO AGUALUSA – Não. A boa crítica literária ajuda muito um escritor. Ajuda-o a perceber o próprio trabalho, independentemente do crítico ter gostado ou não do livro. Eu tento perceber o ponto de vista do crítico. Mas nunca levei muito a sério nem os aplausos nem os apupos. Escrever é uma alegria muito grande. Isso ninguém me tira.

ANGÚSTIA CRIADORA –  “Todos os temas do mundo são variações de sexo e morte”, afirma um dos personagens. Você acredita que, em grande medida, a literatura se apoia nessas variações ou fugas? 

JOSÉ EDUARDO AGUALUSA – Sem dúvida. A literatura trabalha os nossos medos mais profundos.

ANGÚSTIA CRIADORA –  “Escrever é como parte da identidade do escritor”, afirma outro personagem. É uma forma de não se esquecer de si? Ou é o contrário, é uma forma de distanciamento?

JOSÉ EDUARDO AGUALUSA – Escrevemos, regra geral, para tentarmos compreender melhor quem somos, e para tentar compreender os outros. A mim, a escrita sempre me ajudou no processo de construção e de afirmação da minha identidade.

ANGÚSTIA CRIADORA-  Até que ponto o escritor assume o papel de ser outras pessoas, distanciando-se de si mesmo, da sua essência original? 

JOSÉ EDUARDO AGUALUSA – Escrever ficção é assumir outras identidades. Acho que até a chamada auto-ficção faz isso, porque aquele narrador é sempre uma invenção do verdadeiro autor.

ANGÚSTIA CRIADORA-  Ninguém lê os mesmos livros, porque cada um tem olhar diferente sobre uma mesma obra. Enquanto o autor deste romance, como você o define?

JOSÉ EDUARDO AGUALUSA – É um romance sobre a natureza do bem e do mal. A ideia do Paraíso e do Inferno. É também um romance sobre o poder da palavra; sobre como utilizar a palavra para recomeçar o mundo — o nosso mundo íntimo e aquele que partilhamos com os outros.

ANGÚSTIA CRIADORA –  Você trabalha neste livro com a ideia primordial de que a palavra tem poder. É a partir dela que as imagens e situações vão sendo construídas e os eventos modificados. Qual a imagem que está sendo formada do mundo de hoje, tendo como base o que se propaga diariamente nas redes sociais. 

JOSÉ EDUARDO AGUALUSA – Hoje, a nossa palavra, o nosso pensamento, alcança mais pessoas. Também há mais trocas. O pensamento tende a propagar-se com mais rapidez.  Infelizmente, a estupidez também. As novas tecnologias de informação, como quaisquer outras tecnologias, podem ser usadas a favor da vida e da humanidade ou contra a vida e a humanidade. Acho que estamos ainda a aprender a utilizar essas novas tecnologias. E estamos fazendo muita merda, é claro.

ANGÚSTIA CRIADORA –  Quando é que a literatura te dá uma espécie de “furiosa euforia” (como afirma um dos seus personagens) no momento que você está escrevendo?

JOSÉ EDUARDO AGUALUSA – Sempre acontece. Eu prefiro as páginas finais, quando todos os fios se começam a amarrar de uma forma quase mágica.

ANGÚSTIA CRIADORA-  Viver essa pandemia te colocou em contato com uma espécie de ficção que tomou conta da realidade, baseado no mais sombrio dos enredos?

JOSÉ EDUARDO AGUALUSA – A realidade é sempre mais imprevisível que a ficção mais criativa.

ANGÚSTIA CRIADORA –  O que te parece, na vida real (para além da pandemia), saído da ficção?

JOSÉ EDUARDO AGUALUSA – Certos personagens, como o Trump ou o Bolsonaro. Escritores teriam dificuldade em inventá-los. Por um lado parecem não ter um lado positivo, uma única qualidade, o que faria deles personagens sem espessura. Contudo, vendo melhor, há neles uma tragédia, uma dor, um desacerto com o mundo, que a mim me fascina.

ANGÚSTIA CRIADORA –  Não escrever é ver pior as coisas ao redor?

JOSÉ EDUARDO AGUALUSA – Para mim, sem dúvida. Escrever, como já disse, ajuda-me a compreender os outros. Ler também.

ANGÚSTIA CRIADORA –  Nesse caso, inevitavelmente, o escritor é um inventor de passados, presentes e futuros?

JOSÉ EDUARDO AGUALUSA – Inventor ou apenas testemunha, não sei.

ANGÚSTIA CRIADORA-  A feira literária de Os vivos e os outros acontece em uma ilha.  Além de comida, água e livros, o que não poderia faltar para você em uma ilha no fim do mundo? 

JOSÉ EDUARDO AGUALUSA – Amigos. Amigos são tão importantes quanto água,

ANGÚSTIA CRIADORA –  Seria em uma ilha que você gostaria de estar quando o mundo acabasse?

JOSÉ EDUARDO AGUALUSA – Na Ilha em que vivo, se, como no meu livro, nos dessem a possibilidade de recomeçar o mundo.

ANGÚSTIA CRIADORA – Se o mundo renascesse da literatura após algum evento apocalíptico, qual seria a melhor história a ser contada para iniciar a reconstrução?   

JOSÉ EDUARDO AGUALUSA – Modéstia à parte, acho que meus personagens contam algumas boas histórias de reiniciação.

 

MISTÉRIOS EM UMA ILHA DO FIM DO MUNDO

 

Por Ney Anderson

A Ilha de Moçambique está preparada para sediar o primeiro festival literário da sua história. Vários escritores africanos, alguns famosos, são convidados para participar do evento. Até que acontece uma tempestade no continente quando a maioria deles chegam e a ilha fica isolada, sem comunicação com o resto do mundo por sete dias. Ninguém mais entra no lugar. E os que se aventuram em sair, desaparecem.  Além disso, alguns personagens dos livros dos escritores presentes começam a aparecer na ilha, para desespero dos seus autores.

Essa é a base do romance Os vivos e os outros (Editora Tusquets), do angolano José Eduardo Agualusa, um livro centrado em contar uma boa história, entrelaçado por diversas outras tramas. Escritores, por exemplo, que pensam sobre a relação com o ofício da escrita para si e para os outros, veem na viagem uma oportunidade de reencontro com a própria arte. Existem muitas ironias e tiradas sarcásticas sobre o universo da literatura. Eles discutem, sobretudo, o fazer literário e tudo o que esta atividade pode causar. O que é escrever bem, por exemplo? O que é escrever com urgência? Ou como estabelecer uma novidade? “Poeta não é ofício, é condição”, diz uma das autoras.

Eles resmungam, inclusive, sobre as imagens estereotipadas que determinados autores sofrem por parte da crítica, que julga ser quase obrigação deles inserir elementos da natureza nas histórias, principalmente animais selvagens. As situações vão de desenrolando paulatinamente enquanto a ilha vai ficando, de fato, isolada do resto do mundo. Muitos escritores presentes são bastante ligados à tecnologia. E é justamente a falta dela a mensageira do estranho acontecimento.  A noção de confinamento que a falta de tecnologia dá, mesmo em meio à exuberante natureza, é algo marcante na obra. Enquanto isso, os tempos vão se sobrepondo sem ninguém perceber qual a real situação do que está acontecendo no outro lado do oceano.

“- Somos nós que construímos os mundos! – grita Moira. – Somos nós! Os mundos germinam dentro de nossas cabeças e crescem até não caberem mais, então soltam-se e ganham raízes. A realidade é isso, é o que acontece à ficção quando acreditamos nela!”

O romance é recheado por boa dose da história local da Ilha de Moçambique (onde Agualusa reside, inclusive), uma terra totalmente misturada de raças e credos. Cada capítulo é aberto com um trecho de livro escrito por determinado escritor presente no festival. Escrever, no enredo de Os vivos e os outros, é parte forte e determinante da identidade de cada um. Uma forma de não se esquecer de si. A vida que vai sendo continuada (ou organizada) a partir da suposição da morte e a capacidade da literatura em apresentar outras perspectivas.

Todos os personagens têm os dramas expostos, esmiuçados em planta baixa, com as conexões dos sentimentos aparentes. As agruras do escritor, principalmente de não conseguir escrever o que ele anseia em sua totalidade, a credibilidade da ficção, do fazer artístico, os livros onde o autor não mais se reconhece neles etc. Todas essas percepções são como uma espécie de limpeza artística, de reencontro, para cada um presente na ilha. 

” – Passamos cada vez mais tempo mergulhados nessa realidade irreal. Privados dela, estranhamos. Dá-se algo semelhante se passarmos dez horas seguidas concentrados na leitura de um bom romance. No instante em que finalmente pousamos o livro e nos levantamos, o mundo ao redor parece-nos falso, incoerente, pouco sólido. Não é assim?”

Tudo isso, claro, é transpassado para o leitor, já que ninguém lê os mesmos livros, quem dirá ser o mesmo quem escreveu determinada obra tantos anos antes. Também existe espaço para um escritor famoso e misterioso, influência para vários dos autores presentes no festival, mas que ninguém nunca o viu pessoalmente. Ou melhor, que se desconhece a real identidade, porque cada um disse ter conhecido uma figura diferente, sob o mesmo nome.

Em certo momento, quando os personagens dos autores começam a surgir misteriosamente na ilha, o tom de fábula assume o comando, mas também com toques fantásticos e sobrenaturais.  Aí é que todos na ilha começam a entender que os únicos que podem salvar o mundo são os escritores, através da força que as palavras têm de modificar a história escrita até aquele momento.

É uma obra que está presente a ideia da escrita e da criação da forma mais plena possível. O desnudar-se escrevendo. O inferno e paraíso caminhando lado a lado. É muito emblemático, aliás, pensar que só alguns escritores sobrevivem ao fim do mundo, e são eles os responsáveis pela recriação, justamente em uma ilha, que é uma espécie de relicário.

” – Qualquer romance, se for suficientemente bom, presta homenagem a dezenas ou centenas que vieram antes dele. Na minha biblioteca, como na vida, não divido os livros pela nacionalidade dos autores. Não pergunto às pessoas de onde são. O que quero é saber quem são. Então, pergunto-lhes o que gostam de ler.”

Os vivos e os outros fala muito sobre a influência da literatura, da ficção de um modo geral, nas pessoas. A obra está muito conectada também com o aspecto bíblico, já que de acordo com as escrituras sagradas, o mundo foi criado em seis dias. No sétimo, Deus (ou o criador) descansou. Em Os vivos e os outros essa ordem é invertida. Passando do fim para o início, a recriação. O romance, então, vai se desenvolvendo sobre a camada dos olhares dos escritores e das conversas sobre a ideia do poder divino, do escritor se achar Deus, já que também cria os personagens ao seu modo e os insere em mundos distintos.

Ao final da leitura, da ótima leitura deste livro, fica a pergunta no ar. Quem são os vivos e quem são os outros? Claro que ninguém nunca vai saber. A ficção pode responder muitas coisas, mas elas sempre ficam suspensas quando os finais são abertos . O final, em Os vivos e os outros, simplesmente não existe, já que a vida continua sendo escrita em uma dimensão distante dos nossos olhos.

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