No terceiro texto de Cícero Belmar para o projeto Eu Escritor, ele discorre sobre o início de tudo em qualquer ficção: a ideia. Seja um conto, romance ou novela, não existe arte sem uma ideia antes. E de onde surge essa primeira chama para a concepção da arte literária? A resposta é simples e direta: de qualquer lugar. As ideias podem aparecer através de uma foto, uma cena do cotidiano, uma música, uma conversa no ônibus. Mas, para extrair das coisas, até então banais, ideias para a ficção, por exemplo, não basta apenas ficar observando. Para Cícero Belmar “desde que ele (futuro autor) saiba ver. Ou melhor, desde que ele saiba “sentir” o que vê”, será possível sair do conforto da sala de leitura e se arriscar criando as próprias histórias.

 

Por Cícero Belmar

Janelas

Imagem: Janelas/Reprodução internet

 

Quem começa a escrever e já tem uma ideia na cabeça já começou muito bem. Escrever é criar, inventar e fazer. Uma ideia bacana é um estímulo para se escrever. Se você tem em mente uma trama, um artigo crítico, uma declaração de amor, uma carta, um bilhete que seja, então pronto! Já saiu daquela situação acachapante que lhe impedia de se arriscar.


Quem tem ideias tem coragem de se arriscar. Uma ideia na cabeça (se é boa ou se é ruim, não é um problema agora) já é motivo de sobra para começar um texto. Escrever é um ato de generosidade.  Sabe por quê? Porque desperta nas pessoas que leem (sua excelência, o leitor) a necessidade de também contar suas histórias. Quando alguém escreve estimula outras pessoas a se livrarem de suas histórias.

Peço licença para dar um exemplo. Quando ministrei algumas oficinas de sensibilização de leitura e escrita pelo SESC, uma das aulas mais participativas eram a que ajudavam a formar boas ideias para se começar um texto. Um dos exercícios consistia em ver quadros pintados a óleo e fotografias.

Eu apresentava uma sequência de slides, de forma que os participantes pudessem escolher aquele que mais o sensibilizasse. Em seguida, desligava o monitor e era necessário que os participantes descrevessem a cena que mais tocou sua sensibilidade. Sem autoacusações, sem medo de expor as fantasias. Portanto, não deveria ser um relato objetivo e frio. Mas uma descrição daquilo que foi sentido.

Por incrível que pareça, a partir das imagens sempre começava um devaneio, uma lembrança, um argumento que podia progredir para uma trama pequena ou o relato de  um fato guardado na memória. Em geral, eram textos emocionados, mas também o germinal de um original. E literatura é antes de tudo um texto original, ainda que seja uma história antiga.

Outro exercício para estímulo de ideias que os participantes gostavam, eram a descrição de uma cena vista, presenciada. Normalmente ocorria assim: ao sair de casa em direção ao local da oficina, o participante precisaria observar algo que lhe chamasse a atenção. Podia ser uma criança brincando, um operário na construção, tudo serviria para o texto.

Ao chegar na sala, escrevia-se um texto descritivo. Não podia ter mais que 10 linhas. Mais tarde, esse texto deveria ser discutido e ampliado. Era quando as 10 linhas passavam a ser 15 ou 20. Esse texto, no dia seguinte, seria mais uma vez revisto. E mais uma vez cortado e ampliado. Assim terminava numa crônica do cotidiano.

Lembro-me de um relato sobre um bêbado. A moça que o escreveu fez uma descrição pungente a respeito da decadência humana. Acho que a grande sacada desse trabalho era o exercício do olhar. O escritor precisa exercitar o olhar. Alguém já disse, acho que um dos mestres da psicanálise, que nós nascemos com dois olhares. Esse, físico. E o outro, que consegue ver as entrelinhas, que permite ver os significados, os subtextos da vida.

Esses dois exercícios também permitiam  transformar o que era banal em texto. A sua virtude é fazer brotar a literatura no cotidiano. Ou pelo menos transformar em texto (quem sabe, em arte) aquilo que é vivência diária. Tudo serve como matéria prima para um escritor. Desde que ele saiba ver. Ou melhor, desde que ele saiba “sentir” o que vê.

Vale citar Fernando Pessoa, em Autopsicografia: “O poeta é um fingidor/ Finge tão completamente/ Que chega a fingir que é dor/ A dor que deveras sente”.  O escritor é bem assim. Ele vê e finge que sente. Com sinceridade.  Escrever é, antes de tudo, ver e pensar. Ou, refazendo a frase, saber ver e saber pensar.

6 thoughts on “Eu tenho uma ideia!”
  1. Uau. Pegou bem. muito bem. É o que eu chamo de tempestade de ideias. Antes de tudo observar, pensar e deixar vir as ideias. Muito bom Belmar.

  2. Muito bom. Os colunistas do Angústia Criadora estão de parabéns, não poderia ter escolhido uma turma melhor.

  3. Fernando: obrigado, amigo. Sabe o que acho? Nós temos (eu, você, Gerusa, Raimundo, Lúcia) uma linha de pensamento muito parecida. Será que formamos uma “geração”?

  4. Gerusa: você tem razão. O olhar é algo tão incorporado, tão natural, ele parece tão óbvio, que alguns escritores que estão dando os primeiros passos talvez nem levem em conta o quanto ele (o olhar) é fundamental. Obrigado, minha flor, meu bebê.

  5. Ney: você botou pra arrombar na edição do meu texto. Que imagem legal, cara! Tudo a ver, tudo a ver. Obrigado!

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