Crédito: Anderson Botelho

Por Ney Anderson

Em homenagem aos 10 anos do Angústia Criadora, escritores de todo o país falaram com exclusividade ao site sobre literatura, processo criativo, a importância da escrita ficcional para o mundo e para a vida e diversos outros assuntos. Leia a entrevista a seguir com o convidado de hoje. Divulgue nas suas redes sociais. Acompanhe o Angústia Criadora também no Instagram: @angustiacriadora e Facebook: https://facebook.com/AngustiaCriadora

 

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Nascido no Recife em 4 de setembro de 1982, João Paulo Parisio é autor de Legião anônima (contos, 2014, Cepe editora), Esculturas fluidas (poemas, 2015, Cepe editora), Homens e outros animais fabulosos (contos, 2018, editora Patuá) e Retrocausalidade (romance, 2020, prêmio Pernambuco, Cepe editora), obras que o situaram entre os expoentes da literatura brasileira contemporânea. Apontado pelo crítico José Castello como “um dos principais nomes da nova geração de narradores brasileiros”, tem ainda textos veiculados em revistas, jornais e sites especializados.

Instagram: @jpparisio.

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O que é literatura?

Literatura é para mim um estado da linguagem, não um corpo de gêneros. Pode estar num texto de Freud ou Spinoza. Os filósofos pré-socráticos escreviam em versos. Naquele tempo, filosofia era poesia. Pode voltar a ser hoje, às três e quarenta e sete da tarde. Pode estar no pregão de um vendedor numa cidadezinha do sertão, numa estória de assombração contada à noite no copiar de um engenho. O que caracteriza esse estado? A linguagem a serviço da beleza. A serviço não, de braços dados. Transida de beleza. O indício da presença da literatura é a pele da linguagem estar arrepiada.

O que é escrever ficção?

Escrever ficção é puncionar a própria medula para com este líquido rico e especioso modelar bonecos de alfenim que nos traem (cravam em nós os alfinetes de seu contravudu) e por fim e princípio nos comem.

Escrever é um ato político? Por qual motivo?

Sempre, ainda que não explicitado. Explicitar esse caráter político é um segundo ato político, em si menos importante, com bons ou maus resultados. Acima de tudo, acho que a literatura é uma militância pela profundidade. Vivemos hoje em dia, na esquerda e na direita, no leste e no oeste, no norte e no sul, uma crise de superficialidade, uma marcha de obscurantismo com lantejoulas, a saber, telas luminosas de celulares, computadores, tvs. A literatura é e precisa mais do que nunca ser esta militância pela profundidade, jamais descer ao nível da superficialidade geral para cortejar com ela, adulá-la. Isso não tem nada a ver com registro de linguagem, é uma atitude fundamental que norteia a atividade do escritor.

A literatura é sempre política porque mesmo a fantasia mais disparatada tem por matéria-prima os elementos químicos do real e do humano. Sendo o homem animal político por definição, nada do que elabora pode ser destituído de caráter político. O autor de Planolândia (Flatland), romance cujos personagens são quadrados, círculos e triângulos, tinha em mira criticar a sociedade inglesa da época. Felizmente, transcendeu o objetivo. Este livro está na minha lista de desejos da Estante Virtual não por causa, mas apesar da crítica social, ou sem embargo dela. O que há por baixo da crítica, contudo, é inumano e apolítico? Figuras geométricas planas manuseadas pela mente humana, se é que existem fora dela, ganham de imediato curvatura política a partir do momento em que as narro. Não posso conceber as relações entre quadrados e triângulos senão através do prisma das relações humanas. Por mais que tente destoar destas, tenho-as por referência. Nem por serem platônicos os poliedros são apolíticos. O caráter político da literatura não é um objetivo, é uma fatalidade.

Você escreve para oferecer o quê ao mundo?

Beleza, ainda uma vez. Nas suas diversas feições, mais ainda assim beleza. Sem ela só há tristeza, com ela a tristeza tem poesia.

O que pretende tocar com a palavra literária, com a ficção?

Sobretudo o desconhecido. Tocar o abismo, que em seu sentido primitivo é tanto o abissal quanto o sideral, assim o lodo como o éter. Minha divisa é um verme alado.

Um mundo forjado em palavras. Se o tempo atual pudesse ser resumido no título de um livro, seja ele hipotético ou não, qual seria?

Vocês falhamos

Crédito: Roberta Cerqueira

A incompletude faz parte do trabalho do ficcionista? No sentido de que nunca determinado conto, novela ou romance, estará totalmente finalizado?

Sim. Como a uma palavra em outra língua que seja similar a uma nossa em forma e sentido, mas se escreva com uma letra a menos, e se fale com menos um fonema, sempre parece faltar nem que seja um incorpóreo eme nasal. Porque quem escreveu uma obra sabe tudo o que não soube incluir nela, e suspeita que há mais.

Qual o pacto que deve ser feito entre o escritor e a história que ele está escrevendo?

Em conformidade com minha outra resposta, um pacto de tutano, ainda mais íntimo que o sangue, tanto que não lembramos dele, quase nunca o vimos e não sabemos ao certo que aspecto tem, assim como acontece com cada um em relação a si. Um pacto nesses termos: estória nascitura, vou te escrever com o licor cristalino do que tenho de mais íntimo e inacessível. Seguido de um brinde no vazio com esse cálice de líquor.

Esse procedimento não tem relação necessária com uma escrita intimista, introspectiva. Se um romance de aventura for escrito com as águas-do-ser, o leitor sentirá a autenticidade do gesto criador.

O que pode determinar, do ponto de vista criativo, o êxito e o fracasso de uma obra literária?

Antes de mais nada a probidade criativa a que acabo de me referir. Este é o esteio. Sobre ele podemos dispor as camadas da técnica, da imaginação, da observação, da empatia, da disciplina, da consistência. Sem aquela primeira, entretanto, estas últimas, ainda que nenhuma falte, não têm sustentação.

Como surgiu em você o primeiro impulsivo criativo?

Quando eu era pequeno brincava muito de boneco e de botão. A maior parte do tempo, sozinho. Morava em engenho, meus irmãos eram mais velhos e a seu tempo vieram estudar em Recife. Com meus comandos em ação eu criava civilizações, mitos, epopeias, geografias, cenários, psicologias, conflitos. Sem saber, estava treinando, ou hoje é que brinco com bonecos fantasmagóricos, exilado da infância. Às vezes queria deixar tudo montado dias a fio, empreendimento cujo sucesso dependia das tratativas com minha mãe. Mas a conjuntura não era estática, mudava a cada brincadeira. O que eu queria conservar era a integridade do fio da narrativa, não as posições dos objetos no terraço.

Com relação aos times de botão, eu tinha a minha história paralela do futebol mundial. Registrava campeonatos em folhas de caderno, improvisava uma análise combinatória, sorteava as chaves, pareava os jogos, computava os gols. No fim, além de Portugal poder ser tricampeão do mundo, eu atribuía os prêmios de artilheiro, goleiro menos vazado, melhor ataque e melhor defesa, etc. Ah, eu também narrava o jogo em tempo real, não lembro se só em minha cabeça. Isso preciso perguntar a meus pais.

As suas leituras acontecem a partir de quais interesses?

Há sempre uma centelha inicial pela qual um livro nos convida. Pode ser o título, o parágrafo de abertura, um comentário ouvido de passagem. Um livro me atrai quando sinto nele justamente o cheiro de profundidade, que é sempre também o da originalidade, pois lá se escondem as espécies desconhecidas. O mergulho no humano, no nosso mistério, porque tudo que tocamos se transforma em nossa matéria. Tudo que chamamos de universo, por mais alienígena que nos pareça, é o universo segundo o humano. Nossa perspectiva é sempre antropocósmica. Não sabemos como é uma estrela, sabemos como ela se parece a olhos humanos.

Escrever e ler são partes indissociáveis do mesmo processo de criação. Como equilibrar o desejo de ler com o de escrever?

Ambas as coisas têm tanto dimensão de impulso quanto de rotina. Eu aconselharia: nunca negligencie o impulso. Se você tem momentos diferentes do dia pra ler e pra escrever, mas na hora de ler sente o impulso de escrever, escreva; se na hora de escrever sente o impulso de ler, leia. Impulso e rotina, mas com uma hierarquia. Acima de tudo, o impulso.

Um escritor é escritor 24 horas por dia? É, ao mesmo tempo, uma benção e uma maldição?

É tão importante ele esquecer que é escritor quanto verdadeiro que não deixa de sê-lo um só segundo. Nenhum escritor deixa de captar uma pepita em seu pensamento, a raiz de um poema ou de uma ficção, porque está fazendo as contas do mês ou malferido de paixão. Há um estado de vigilância permanente, a solitária no âmago de que nos fala Vargas Llosa nunca dorme e sempre come. Se lhe falta alimento, retira os nutrientes do hospedeiro. Uma vez, na autópsia de um escritor que morreu com quarenta e três quilos, encontraram em seu abdômen uma tênia, e ela estava gorda.

O crítico Harold Bloom falava sobre o fantasma da influência. Você lida bem com isso?

Sim. Mesmo porque tudo é influência. A biografia do autor, a época, o lugar. Não há assepsia possível na criação. Se é para receber afluentes, que estejamos de braços abertos para os mais ricos em nutrientes, sejamos nós mesmos as tênias dos grandes escritores que passaram e permaneceram.

O escritor sempre está tentando escrever a obra perfeita?

Sim, ou pelo menos a obra revolucionária, a obra que supera e até mesmo o supera. E vai sendo escrito pelo que escreve. Julgando criar um novo objeto no mundo, tatua as entranhas.

Como Flaubert disse certa vez, escrever é uma maneira de viver?

Uma espécie de impuro sacerdócio, necessariamente sujo de vida, poluído de experiência.

Quando você chega na conclusão de que alcançou o objetivo na escrita (na conclusão) da sua história? 

Se chego, o que nem sempre acontece, é quando vem a sensação de uma satisfação que se espraia desde o incerto centro como uma onda de hortelã. Há um indispensável elemento de autossurpresa. Se planejo o início, o meio e o fim de uma estória e tudo sai conforme o prefigurado, nenhuma das frases me trai, está errado. Preciso que algo inesperado aconteça, que os personagens me fujam, que as palavras se aglutinem a seu modo, que o texto se insurja como o tecido de um organismo vivo. Fala-se muito na voz própria do autor, na conquista do estilo como do pico do Everest, mas acho importante que o escritor se pergunte, sempre: “como eu não diria isso?”

A literatura precisa do caos para existir?

No caos é que surge a vida, embora ela precisa de ordem íntima. Há no caos o germe da harmonia e na harmonia o germe do caos, numa progressão fractal infinita, hipnótica, auspiciosamente perigosa.

O escritor é um eterno inconformado com a vida?

Sim, e um transitório inconformado com a morte.

Cite um trecho de alguma obra que te marcou profundamente.

Vou optar por um trecho de Niels Lyhne, do dinamarquês Jens Peter Jacobsen, livro pelo qual sou apaixonado e que reverencio há uns 20 anos. Esse trecho fala justamente da condição do artista, da orfandade transcendental do homem do século XIX, que ainda reverbera em nós, e da fuga infatigável do tempo:

        “– eu preciso que uma obra de minha autoria me faça senhor de uma certa porção do tempo. Compreende? O tempo que gasto em pintar um quadro continua a me pertencer, ou pelo menos deixa sempre alguma coisa, não acaba de todo apenas porque passou. Sou capaz de ficar doente quando me lembro de como os dias passam implacavelmente. E não me fica nada ou, pelo menos, nada que eu possa aproveitar. É uma tortura. Não há nada tão lastimável como ser artista; aqui estou, cheio de saúde e força, tenho ótima vista, o sangue me aquece o corpo, meu coração bate com força, minha inteligência está intacta e eu quero trabalhar, mas não posso fazer nada, luto e tento agarrar algo de invisível, algo que não se deixa agarrar, e todo o esforço seria inútil. Que fazer para ter uma inspiração, uma ideia? Posso concentrar-me tanto quanto quiser, posso tentar não pensar em nada, mas nada, apenas a sensação de que o tempo está mergulhado até a cintura na eternidade e atrai as horas que desfilam vertiginosamente, doze brancas e doze pretas, sem descanso, sem descanso. Que fazer? Deve haver alguma coisa a se fazer nesta situação, não posso ser o primeiro, não acha? Não conhece algum remédio?

        – Faça uma viagem.”

Apenas um livro para livrá-lo do fim do mundo em uma espaçonave. O seu livro inesquecível. Qual seria?

Não consigo pensar em um e trair todos.

Qual a sua angústia criadora?

Criação em si é angústia. Criar é tirar de si e expor o que sai. Entre uma coisa e outra, ver pela primeira vez esse material. A metáfora da punção me parece feliz porque quando você passa por uma (mesmo que para retirar líquido sinovial do joelho) experimenta uma angústia da indeterminação entre a dor e o prazer. A sensação nos atira num limbo conceitual. “Parece que a alma vai sair”, diz quem já passou por punção de medula. No caso da criação, eu diria que a angústia é a da superposição entre plenitude e vazio. Essa punção obedece a uma pulsão. Depois de falar, contudo, o homem é um animal triste.

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