É de comum acordo que, ao produzir um texto de ficção, e depois de algum tempo voltarmos para ele, muitas coisas serão apagadas e outras reescritas. Se escreve quase sempre por impulso, depois de muitos anos de leitura. Ficamos felizes quando a história começa a ser desenhada no papel, algo que seria praticamente impossível algum tempo antes. Aos poucos o escritor vai surgindo, a cortina vai sendo aberta, mostrando um horizonte de enormes possibilidades. Mas é preciso calma, bastante calma. Como na comparação entre as lavadeiras e o ato de escrever, muito bem empregada por Graciliano Ramos, autor homenageado da Flip desse ano, que por sua vez foi utilizada nesse novo artigo de Gerusa Leal para o Eu escritor. É preciso, antes de tudo: “Lavar, torcer, molhar novamente, torcer mais uma vez, bater o pano na pedra e, só depois, quando não houver nenhuma sujeira e nem um pingo de água, colocar o pano no varal para secar”.

Por Gerusa Leal

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Imagem: internet

 

“Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício.

Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxaguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar.

Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer”. Graciliano Ramos

Pois bem. Você leu, leu muito, continua lendo. Sentiu o impulso de escrever. Colocou as ideias no papel. Até que nem foi tão difícil assim como eu dizia, foi? Conseguiu tirar os críticos de cima dos ombros, nesse primeiro momento, materializou o texto. Afinal, não havia mesmo ninguém espiando o que estava escrevendo. Você obedeceu ao impulso, como ele veio.

Usou a imaginação, a memória, a observação. Com um olho nas lembranças, usou a própria fantasia. Foi você mesmo. Colocou tudo que veio à cabeça no papel. Não se preocupou muito com a gramática. Apenas produziu o texto como ele lhe chegou. E até que gostou do resultado.

Guardou o texto na gaveta, ou salvou no Word, foi dormir satisfeito, até orgulhoso, o texto estava bom mesmo. Começou até a pensar em mostrar a alguém para ver o efeito que causava. Mas deixou para o outro dia.

Pela manhã, ou na semana seguinte, antes de mostrar para aquele seu primeiro leitor, resolveu reler o que havia escrito. Nossa, haviam escapulido alguns erros de ortografia, outros de regência verbal, uma palavra faltando aqui, outra sobrando ali, uma pontuação incorreta, você fez uma revisão gramatical.

Quem diria que tanta coisa podia escapulir num primeiro momento de criação, não é mesmo? Agora ficou bom. Mas quem sabe não era melhor deixar o texto quieto mais um dia ou dois e ler outra vez antes de mostrar a alguém? Vai que de repente havia escapado mais alguma coisa que podia ser corrigida antes? Você esperou.

Uns quatro dias depois pegou o texto para reler. Não. Não havia mais erros gramaticais. Agora estava do jeito que você queria. Será? Resolveu ensaiar uma leitura em voz alta antes de partilhar com aquele seu leitor de confiança. E assim o fez. Vamos supor que o texto tenha ficado mais ou menos assim:

O menino de camisa vermelha sentava na pedra dura e a seu lado árvores de copas altas formavam uma vereda de troncos vermelhos traçando um caminho estreito e escuro. De cabeça baixa pousada sobre os braços cruzados sobre os joelhos ele não conseguia respirar o perfume delicado dos pinheiros nem ouvia o som longínquo de uma refrescante cachoeira. Sem se importar com nada ao seu redor, a beleza, a força e a energia que o rodeavam transformavam-se na materialização da mais profunda tristeza.”

Mas, se não há mais erros propriamente ditos, por que ao ler em voz alta alguma coisa não lhe chegou bem? Apesar de falar em tristeza, o texto está lindo, exuberante, cheio de palavras belas e sonoras.

Bem, essa vozinha que você escuta lhe questionando sobre o texto que já achava tão no ponto é a voz da intuição. É ela quem nos aponta erros, desvios, confusão, mesmo sem muita exigência. Ainda estamos no primeiro momento da criação mas já desconfiamos dos equívocos. Percebemos que o texto tem mais possibilidades. As palavras começam a pedir cortes, acréscimos, organização.

Na conversa passada, citamos (António) Albalat. Sim, ele mesmo. Aquele que fez a célebre pergunta: como se passa de um primeiro impulso imperfeito a um texto definitivo de fazer seu autor figurar no panteão dos grandes escritores? Pois bem, começa-se com a intuição. Albalat declarava-se contrário ao mito romântico da inspiração. Para ele, escrever bem residia em todo aquele empenho que tornaria o texto limpo, feito se costuma dizer. Lavado e enxaguado, para lembrarmos Graciliano Ramos quando compara o ofício do escritor ao das lavadeiras de Alagoas.

Mas você não é Albalat. Muito menos Graciliano Ramos.

Não. Não precisamos começar com esse grau todo de exigência. Mas bem que sua intuição está lhe dizendo que nesse trechinho do texto que lemos acima as palavras estão brilhando mais do que dizendo.

Que tal então começar a ir separando o ouro falso, a ganga da palavra que aparece demais e diz pouco, do ouro verdadeiro da palavra que, mais que dizer, mostra? Você não vai conseguir deixar a palavra pronta pra pendurar no varal apenas com uma primeira lavada. Mas a cada lavada, como se fôssemos retirando as camadas de uma cebola, é comum ir aparecendo outra camada de “sujeira”.

Não que seu texto precise ser limpinho e branco feito a neve. Às vezes um pouco de sujeira é o toque de que o texto precisa. E até a neve tem, dizem os entendidos, suas nuances, suas manchas, suas variações. Mas é preciso perceber que a sujeira está ali, e está ali porque você quer, porque pretende um efeito qualquer com ela, e não porque o texto está mal lavado.

Então, para não estender demais essa conversa, fica a dica de exercício. Eu não sei a sua, mas a minha intuição me diz que esse trechinho do texto que lemos tem, dentre outros problemas, no mínimo, adjetivos demais. Excelente o exercício de caçar adjetivos. Você vai ver que às vezes basta eliminá-los, mas em geral não é tão simples assim. Não vou dizer que é fácil, mas com certeza é possível, por exemplo, “mostrar” “a mais profunda tristeza” do personagem sem precisar adjetivá-la.

Vamos tentar lavar e enxugar a amostra de texto apresentado? Vamos ver onde chegamos. O quanto avançamos com a ajuda da intuição, sem pensar sequer ainda no uso de técnicas mais elaboradas. Só com a ajuda da intuição. Por pouco que avancemos, com certeza teremos uma reação melhor do nosso leitor mais crítico quando, finalmente, resolvermos dividir com ele nossa criação.

2 thoughts on “Lavando e enxaguando”
  1. Olá, Gerusa.

    Estou acompanhando os textos do Eu Escritor e gostei bastante deste último. Vou tentar fazer o exercício para ver se consigo limpar o texto.

    Abraço,

    Vine

    1. Oi, Vine. Que bom que gostou. Dá uma lavada e uma enxaguada nesse texto. Você vai ver que é um exercício interessante. Abraço e obrigada por acompanhar o Eu escritor.

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