Foto: Marcos Vilas Boas

Por Ney Anderson

Cada livro de Lourenço Mutarelli é uma experimentação. Por conta do olhar incomum do autor, ele acabou despertando a curiosidade de leitores, críticos e cineastas, que viam nele um romancista realmente novo, de pegada original, vindo da linguagem das HQs. O novo romance, O filho mais velho de Deus e/ou Livro IV (Cia das Letras) lida com o mesmo experimentalismo dos outros trabalhos, mas num tom acima. É o romance do projeto Amores Expressos, da Companhia das Letras, que enviou Mutarelli aos Estados Unidos, precisamente para Nova York, para que ele escrevesse uma história de amor ambientada no território novaiorquino. A ideia do autor foi por falar sobre os reptilianos, seres de outros planetas em forma de réptil, dentro de um contexto conspiratório, envolvendo ETs, demônios, sexo anal, entre outras coisas, através de um personagem que não tem nada a perder.

O romance acompanha a vida do protagonista Charles Noel Brown, conhecido também como Albert Arthur Jones, Ele ou Peanuts, morador de Minnesota (EUA), que ouve o relato contado pelo melhor amigo Paul sobre ter visto um disco voador. Na história, o amigo diz que viu outras coisas extraterrestres e lhe dá um envelope e um número para ligar se algo lhe acontecer e entregar para o contato que vai buscar. É exatamente o que acontece. O amigo some, aí ele liga para o número.

Nesse momento, oferecem uma nova identidade num esquema de proteção. Não do governo, e sim de um grupo particular. O protagonista, fica fascinado com a ideia, aceita e vai para Nova York, passando a se chamar George Henry Lamson. O livro é muito em torno das experiências desse sujeito, vivendo num grupo de pessoas estranhas, fanáticas com a questão de óvnis, e ele tendo que se adaptar com um novo nome, numa nova cidade. A história de amor, exigência do projeto do Amores Expressos, surge quando o protagonista começa a ter uma relação de fachada com uma mulher, Sarah Simpson (ou Trudi) pois faz parte da proteção, e se apaixona por ela, ou melhor, pelos seios fartos dela, mas logo depois passa a desconfiar que a companheira seja, na verdade, um reptiliano.

O maior desafio da trama foi deixá-la verossímil, porque o narrador não acredita nos reptilianos e muito menos o protagonista. Mas o autor consegue criar a dúvida no leitor, e por isso mesmo segura a narrativa. Nesse novo trabalho tem muita brincadeira com a língua, apesar de bastante humor e pesquisa sobre esses assuntos de óvnis e de répteis intergaláticos. Ele tem muita poesia na forma como é apresentado, sobretudo nas emoções fragilizadas do protagonista. No entanto, não é uma leitura fácil. Nem todos vão gostar, mas é um livro que se basta.

“Primeiro eu achei uma ideia maravilhosa, em ter que ficar um mês em outra cidade, sem necessariamente falar a língua local e também por não conhecer o lugar. Eu falo apenas umas doze palavras em inglês, mas eu me virei lá. Quando me convidaram, falei que queria ir para Beja, uma cidadezinha no Alentejo, em Portugal, que eu passei dez dias e amei. Aí eles me mandaram para Nova York, que é um lugar onde não tinha a menor vontade de conhecer. Isso foi ruim para mim. Tudo que eles têm de mais legal não me interessa, tenho desprezo por aquela cultura da aparência, pelo que se vende e se acha bacana. Fui para lá e tive o meu primeiro bloqueio criativo e voltei a beber depois de quinze anos. Aí tive que voltar para Nova York um ano depois para tentar resolver o meu livro. Nessa segunda vez foi mais atraente, pois ir para lá bebendo deixou a cidade bem mais interessante e divertida. Mesmo assim ela não me ganhou, não mudou a impressão que eu tinha. Pelo contrário, reforçou demais tudo o que pensava sobre ela. É um lugar que a gente já conhece, somos bombardeados todos os dias de informação sobre aquele país”, comenta o autor sobre ter feito o livro sob encomenda.

George vive obcecado pela bunda de uma mulher que ele se relacionou e nunca mais esqueceu. Algo que o autor já fez no excelente O cheiro do ralo, seu primeiro trabalho na literatura. O personagem começa a entrar num estado de perturbação por conta da nova vida. Além de ser alguém de aparência curiosa, que todos riem quando cruzam por ele. O romance lembra um pouco a atmosfera fragmentada e delirante de Almoço Nu, William Burroughs, que inclusive é citado no livro. “Quando você está desestabilizado psiquicamente tudo é mais sombrio e possível. Você vê coisas que se estivesse bem não veria, pensa coisas que não pensaria. Desde de uma paranoia conspiratória, suicídio, desconfiar de pessoas muito próximas, até achar que a realidade é uma ilusão. Meus personagens estão sempre nesse limite, a três passos de uma crise irreversível que eles vão viver, onde vou acompanhá-los por um tempo nisso”, diz Lourenço.

É exatamente nessa pegada que caminha O filho mais velho de Deus e/ou Livro IV. Que é o mais pop de Mutarelli, mas não o melhor. A história perde um pouco de força em algumas partes, mas logo depois retoma o curso da trama central. Não é um livro de forma alguma mal escrito, mas que não tem o mesmo vigor dos anteriores. Talvez pela própria opção de fazer uma história totalmente ousada, diferente de tudo o que ele fez até agora, flertando totalmente com a ficção científica. É uma louca teoria sobre a criação do universo e, consequentemente, de Deus. Ou sobre o filho mais velho dele. Não necessariamente uma entidade do bem.

Dividido em três grandes partes, distribuídos por subcapítulos, o romance se passa entre 23 de agosto até 14 de setembro de 2007 (com alguns saltos temporais), justamente em meio as homenagens e lembranças dos seis anos do atentado terrorista que abalou os Estados Unidos. Mesclando os fatos principais com cenas da vida do protagonista em Nova Yorque, enquanto outras pequenas histórias secundárias vão sendo contadas, se integrando ao enredo principal. São relatos da vida do protagonista antes de mudar de nome e de cidade.

Os elementos narrativos que consagraram Mutarelli estão presentes, de forma mais depurada e poética, com diálogos precisos e interessantes, dentro de um texto de humor grotesco, calcado também numa linguagem imagética, de forte apelo fantasioso. Mesmo que a base tenha sido construída tendo como foco o princípio do real, para depois virar algo completamente mais amplo, do que o conceito de visão é capaz de alcançar. Ou de que a mente é capaz de compreender. Como em outros trabalhos do autor, esse também é muito soturno. Feito da substância duvidosa no qual George está inserido, dentro da ideia de realidade distorcida. Onde qualquer coisa pode acontecer. Inclusive nada. É uma grande brincadeira proposta pelo autor. Outro fato importante no romance é a opção, mais uma vez, de ambientar a história em locais fechadas, como Mutarelli sempre gostou de fazer. Embora ele utilize neste novo livro planos mais abertos, mostrando o cenário americano sob a ótica depressiva e lenta do personagem. A vida monótona dele, com forte presença da solidão. “De algum modo viveu de forma parasitária, feito um demônio menor”, diz o narrador sobre o personagem.

O filho mais velho de Deus nasceu justamente quando Mutarelli estava sozinho em casa, a noite, zapeando por canais do tipo Discovery, quando se deparou com um documentário sobre sereias. “Ele era tão bem construído, o documentário, que levantava a possibilidade de realmente existirem sereias. Foi aí que nasceu o livro, quando eu resolvi escolher uma coisa que eu achava ridícula e tentar criar uma credibilidade. Esse era o desafio, falar de algo do qual eu não acredito, mas tentar ver como podia tornar isso por um minuto algo possível de ser verdade”, diz o escritor.

O Texto é truncado, aparentemente de muita pesquisa, sendo inclusive dedicado ao Google, Google Tradutor, Google Street View e Wikipédia. A narrativa perde um pouco do vigor justamente por conta do excesso de informações, das repetições obsessivas do protagonista, e também quando o mistério do romance é revelado no meio da história, esfriando um pouco o que vem a seguir. A história de amor é totalmente incomum, por conta da forma que a trama é desenhada, podendo ser uma coisa ou outra. Nas mãos febris de Mutarelli esse relacionamento amoroso de fachada não poderia ser mais alternativo e elevado ao extremo. Ele parece dizer: porquê não? Em literatura tudo pode. Nada segue uma linha muito lógica no Filho mais velho de Deus, com ETs, demônios, seitas, referências variadas de escritores, cantores, atores e todo um conjunto de figuras conhecidas, além dos personagens, quase todos homônimos de assassinos. O experimentalismo reside exatamente na trama em si, não no estilo.

No final das contas, parece que O filho mais velho de Deus e/ou Livro IV é uma grande crítica nas entrelinhas ao país americano, com toda a sua potência, mas também superficialidade. O nada existencial que se reflete no personagem. Os próprios títulos dos capítulos, e do romance, brincam com a ideia de que a história pode ser uma coisa ou outra, mas nada em definitivo. Como, por exemplo, “Em inúmeras mentes e/ou Nostalgia”, “A inveja dos deuses e/ou Aquela que viu a profundidade”, “As águas da amargura e/ou Nasce o Senhor de toda a Terra”, e por aí vai.

É um livro irracional, que pode ser entendido também como uma grande alegoria de pensamentos cada vez mais contraditórios e confusos, na eterna busca por respostas. No término da leitura, no entanto, fica a sensação incômoda da dúvida. E ainda mais agora, quando os olhos do mundo se voltam para o país norte-americano, que caminha com a coerência de um governante que parece ter vindo do espaço. Mas não em missão de paz.

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