
Por Ney AndersonEntre o trem e a plataforma
Em homenagem aos 10 anos do Angústia Criadora, escritores de todo o país falaram com exclusividade ao site sobre literatura, processo criativo, a importância da escrita ficcional para o mundo e para a vida e diversos outros assuntos. Leia a entrevista a seguir com o convidado de hoje. Divulgue nas suas redes sociais. Acompanhe o Angústia Criadora também no Instagram: @angustiacriadora e Facebook: https://facebook.com/AngustiaCriadora
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Lucimar Mutarelli nasceu em São Paulo (1969). É professora de História da Arte. Entre suas publicações encontram-se os romances , Férias na prisão, Dois garotos e Só aos domingos.
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O que é literatura?
Literatura é uma linguagem artística. Arte de transmitir em palavras a expressão e os sentimentos de seu autor. No meu cotidiano é uma forma de expurgar, tirar de mim tudo aquilo que não me serve mais. Eu costumo dizer que é um vômito ou uma caganeira. Tudo sai de mim como um jato.
O que é escrever ficção?
Como diria Marcelino Freire é mentir com verdade. É sentar todos os dias e trabalhar, trabalhar muito. Quanto mais a gente escreve mais o fluxo vem. É abrir um portal, um rio que caminha tortuosamente, sem freio, sem parada, livre, cercado apenas por suas margens.
Escrever é um ato político? Por qual motivo?
Sempre. Qualquer forma de Arte é política. Trata-se de uma interferência no sistema, uma forma de agir, mesmo que atinja um único leitor a mensagem foi passada, o recado foi dado.
Para além do aspecto do ofício, a literatura, de forma geral, representa o quê para você?
Uma forma de companhia. Enquanto escrevo não me sinto tão sozinha. Estou amparada pelos universos que crio. São pessoas, lugares, situações e momentos. Podem ser alegres ou tristes mas que sejam ricos em emoção. Uso a literatura para me emocionar.
O escritor é aquela pessoa que vê o mundo por ângulos diferentes. Mesmo criando, por vezes, com base no real, é outra coisa que surge na escrita ficcional. A ficção, então, pode ser entendida com uma extensão da realidade? Um mundo paralelo?
Sim. Claro. É uma forma de continuar pensando. Agindo com os instintos. Um mundo que a gente cria pra não se sentir tão sozinho no cotidiano.
Quando você está prestes a começar uma nova história, quais os sentimentos e sensações que te invadem?
Um sufocamento. Estrangulamento. Entupida por tantas palavras.
A leitura de outros autores é algo que influencia bastante o início da carreira do escritor. No seu caso, a influência partiu dos livros ou de algo externo, de situações cotidianas, que te despertaram o interesse para a escrita?
Eu sempre escrevi para os outros. Gostava de mandar cartas e criar cartões personalizados para os amigos. A leitura me proporcionou um mundo de várias temáticas, viagens ao mundo exterior e interior. O cotidiano também está muito presente no que escrevo. Me livro de algumas emoções ruins através da escrita. Uma fuga.
Você escreve para tentar entender melhor o que conhece ou é justamente o contrário? A sua busca é pelo desconhecido?
Busco pelo que há de desconhecido em mim. Tudo aquilo que ainda não sei. Escrevo para os outros e para dentro.
O que mais te empolga no momento da escrita? A criação de personagens, diálogos, cenas, cenários, narradores….etc?
Todo o ritual mas, especialmente, encontrar palavras certas. Abrir um dicionário, ouvir uma música, ler um livro, ver um filme, absorver tudo que aquilo me traga mais palavras. Amo como a história vai se desenrolando, saindo sem amarras.
Um personagem bem construído é capaz de segurar um texto ruim?
Eu acho muito relativo o termo ruim para justificar uma forma de arte que não me interessa. Pelo menos aos olhos de seu autor aquele texto é bom. Não gosto de julgamentos. Se o personagem é bem construído, a sua história me interessa.
Entre tantas coisas importantes e necessárias em um texto literário, na sua produção, o que não pode deixar de existir?
Verdade e emoção.
Nesse tempo de pandemia, de tantas mortes, qual o significado que a escrita literária tem?
Uma forma de companhia para dias tão tristes como esses.
No Brasil, o ofício do escritor é tido quase com um passatempo por outras pessoas. Será que um dia essa realidade vai mudar? Existem respostas lógicas para esse questionamento eterno?
Não vai mudar. Só muda para aqueles que atingiram o reconhecimento do povo e da crítica.
A imaginação, o impulso, a invenção, a inquietação, a técnica. Como domar tudo isso?
Não é para ser domado. É para ser degustado no seu auge, na sua inquietação. Usufruir cada milésimo desse tempo dedicado à escrita.
O inconsciente, o acaso, a dúvida…o que mais faz parte da rotina do criador?
O café e o cigarro…rs. A incerteza, a ausência, a instabilidade, o incômodo, a melancolia e a febre da criação.
O que difere um texto sofisticado de um texto medíocre?
O tempo que foi dedicado à ele. A pesquisa. A lapidação na escolha das palavras.
O leitor torna-se cúmplice do escritor em qual momento?
No meu caso, a partir do momento em que inicio a escrita, já estou dividindo tudo com meu leitor. Já estou compartilhando com ele mesmo que ele não saiba. Por um outro lado, o leitor torna-se cúmplice quando se deixa levar, se permite navegar pelo rio.
O leitor ideal existe?
Não. Qualquer leitor serve. É urgente ser lido.
O simples e o sofisticado podem (e devem) caminhar juntos?
Sempre. Quanto mais simples mais sofisticado pra mim. Eu admiro muito o escritor que consegue passar ideias muito complexas com palavras fáceis, sem rebuscar muito.
Cite um trecho de alguma obra que te marcou profundamente.
“Não, meu bem, não adianta bancar o distante: lá vem o amor nos dilacerar de novo…” (Caio Fernando Abreu – Morangos mofados)
Apenas um livro para livrá-lo do fim do mundo em uma espaçonave. O seu livro inesquecível. Qual seria?
Os diários de Sylvia Plath – 1950-1962
Qual a sua angústia criadora?
Perder as palavras. Não saber onde está a ponta do novelo para começar a tecer.