Por Ney Anderson

Em homenagem aos 10 anos do Angústia Criadora, escritores de todo o país falaram com exclusividade ao site sobre literatura, processo criativo, a importância da escrita ficcional para o mundo e para a vida e diversos outros assuntos. Leia a entrevista a seguir com o convidado de hoje. Divulgue nas suas redes sociais. Acompanhe o Angústia Criadora também no Instagram: @angustiacriadora e Facebook: https://facebook.com/AngustiaCriadora

 

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Luzilá Gonçalves Ferreira, é pernambucana de Garanhuns. Romancista, ensaísta, por muitos anos professora de Literatura Brasileira e Francesa na UFPE. Professora de Literatura Brasileira no Centro de Estudios Brasileños em Buenos Ayres. Doutora em Estudos Literários pela Universidade Paris VII. Pesquisadora do CNPq (História das mulheres). Nove romances publicados pelas editoras Rocco e Companhia Editora de Pernambuco (Cepe ). Alguns prêmios literários. Vários artigos publicados em revistas e livros especializados, entre eles, Les femmes dans la ville, Presses de la Sorbonne. Sobre um certo amor, in Chico Buarque o poeta das mulheres… org. de Rinaldo de Fernandes, editora Leya, Portugal, Lou Salomé a paixão viva, in Os sentidos da Paixão (Companhia das Letras), S.P. Escritoras Brasileiras do Século XIX, editora Mulheres Edunisc. Entre as principais obras, destacam-se Os Rios Turvos e Muito além do corpo, que receberam prêmios nacionais e No Tempo frágil das horas. Ocupa a cadeira 38 da Academia Pernambucana de Letras.

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O que é literatura?

Literatura é essa tentativa de transmitir, através de palavras escolhidas, uma visão pessoal de experiências reais ou imaginadas desse mundo em que nos é dado viver. Para falar como Borges: um sonho lúcido.

O que é escrever ficção?

Escrever ficção: inventar histórias, mergulhar no mais longe de si mesmo, criar enredos e personagens que possam fazer concorrência ao real.

Vocação, talento, carma, destino…..o escritor é um predestinado a carregar adjetivos que tentam justificar o ofício?

O escritor é sim, um predestinado: como fugir ao desejo de se falar, de acrescentar nem que seja uma pedrinha, à construção do mundo? De permanecer. Claro que é preciso talento, mas a isso se deve acrescentar o ofício, o trabalho: polir, apagar, rasgar, recomeçar, com a certeza de que  nunca se disse o que se queria, mas que apenas se chegou perto.

Qual o melhor aliado do escritor?

O silêncio, que ajuda a mergulhar em si mesmo e apaga as vozes do mundo.

E qual o maior inimigo?

A vaidade, a presunção, o desejo de aparecer a qualquer custo e de obter a aprovação da crítica.

Escrever é um ato político? Por qual motivo?

Escrever é sempre um ato político. Uma tomada de posição, mesmo que não se esteja concretamente e confessadamente engajado com essa ou aquela ideologia: que se sofra e se denuncie claramente as injustiças que nos cercam. E o uso leviano da língua. O escritor sempre escreve contra.

Quais os aspectos que você leva em conta no momento que começa a escrever?

No momento de escrever eu levo em conta meu próprio desejo de escrever e o que vou escrever. Até que ponto essa minha fábula me interessa? Onde quero chegar, se chegar… Tenho dois romances na gaveta, muitos contos, que nunca publicarei porque não cheguei onde queria. Não tenho coragem de retomar. Nem de jogar fora. Sou desorganizada, e admiro as pessoas que possuem um método rígido de trabalho, que sofrem ao escrever. Uma certa organização inicial pode  contribuir a que não perca, digamos, o fio da meada, já que tudo cabe dentro de um romance pois, de fato, uma história ficcional nunca termina.

A literatura existe para entendermos o começo, o meio ou fim?

Entender o começo, o meio, o fim. De nós mesmos, enquanto indivíduos? Da história da humanidade em geral? Do romance?

Se escreve para buscar respostas ou para estimular as dúvidas?

Pode ser que se escreva para buscar respostas. De fato, a rigor, não há respostas, só duvidas. Mas são as dúvidas que nos fazem criadores.

Criar é tatear no escuro das incertezas?

Boa definição.

Cite um trecho de alguma obra que te marcou profundamente.

Há duas expressões que me marcaram profundamente. A primeira é de Romain Rolland, em seu Jean-Christophe, lido aos quinze anos; “Criar é matar a morte.” A outra, é de Rainer Maria Rilke; “Tudo conspira para que silenciemos”, nas Elegias de Duino

É possível recriar o silêncio com as palavras? Como?

Recriar o silêncio com as palavras? Sim, do mesmo modo como, após escutar um belo trecho musical, a emoção nos domina e sentimos que as palavras são desnecessárias, que já se disse tudo, que já habitamos nossos longes. Ou quase.

Você acredita que qualquer pessoa pode escrever uma história? Mas, então, o que vai fazer dela escritora, de fato?

Qualquer pessoa pode, sim escrever uma história. Mas necessita de ler, ler, ler. Para saber manejar seu instrumento de trabalho, ter o domínio da linguagem, da arte de construir uma narrativa, com seus pontos fortes, seus suspenses, seus centros de interesse, seus silêncios. E acreditar que tal história pode comover o leitor, como aconteceu ao autor. Nesse caso, o assunto pode ser, talvez, o que menos importa.

É preciso saber olhar o mundo com os olhos da ficção? O mundo fica melhor ou pior a partir dessa observação?

O escritor sempre olha o mundo com os olhos da ficção. Nesse caso o mundo não fica melhor nem pior. Daí podemos dizer que todo romance é realista. Ou ao contrário: que não existe romance realista.

Todo texto ficcional, mesmo os mais extensos, acaba sendo apenas um trecho ou fragmento da história geral? Digo, a ficção lança o seu olhar para as esquinas das situações, sendo praticamente impossível se ter uma noção do todo?

Penso no chamado “roman fleuve,” que se estende por vários volumes, conta a história de uma família, de uma consciência, de uma geração, de fragmentos da história da humanidade em geral. Você tem razão: a ficção se debruça apenas sobre pedaços de situações, sobre esquinas, cortes. É preciso ter sido um grande leitor, um devorador de obras de ficção para se ter uma pequenina ideia da complexidade das relações humanas, de nosso estar no mundo. Se não, a vida não basta.

Nesse sentido, uma história nunca tem início, meio e fim?

Uma história não tem mesmo início, meio ou fim. Mesmo aquela que narra uma vida, do nascimento à morte, como no romance de Romain Rolland: o menino que acaba de nascer escuta o som dos sinos, prenúncio de sua vida de músico,  é aquele mesmo Jean-Christophe  que, ao final do romance,  termina atravessando o rio da morte, ajudado por São Cristovão, que, como o nome indica, é aquele que transporta o Cristo.

Você escolhe os seus temas ou é escolhido por eles?

Eu penso que escolho meus temas. Mas o fato, eles é que me chegam, me dominam, me obrigam a escrever, eu carrego eles, “como se carrega um pássaro ferido,”, conforme escreve Aragon, ao falar de amor. Resisto, um pouquinho de vaidade me diz: isso vai interessar alguém? Daí os escritos na gaveta ou na cesta de lixo.

É necessário buscar formas de expressão cada vez menos sujeitas ao cânone, desafiando a língua, tornando-a mais “suja”, para se aproximar cada vez mais da verossimilhança que a história pede? Ou seja, escrever cada vez “pior”, longe da superficialidade de escrever “certinho”, como disse Cortázar, talvez na tentativa de fugir da armadilha do estilo único?

Buscar formas de expressão em si mesmo, às vezes na admiração por outros escritores, que disseram tão bem o que nós próprios experimentamos. Não há um estilo único, a gente está sempre se refazendo. Como na vida. Mas por quê cair nos modismos, nos textos sem ponto nem virgulas,  imitando o que outros fizeram, só para ser moderno? É chato ser moderno, muito obrigada, Drummond. Língua suja? Verossimilhança? Escrever “certinho”? Antonio José, o judeu, nos tempos da Inquisição, retomou em seu teatro a linguagem do povão dos altos de Lisboa e ate hoje é moderno, a gente lê com prazer e admiração.

Quando é que um escritor atinge a maturidade?

Não sei quando um escritor atinge a maturidade. Talvez nunca. Às vezes ele já nasce feito, explode de repente. Como aconteceu a Juan Rulfo, com o Pedro Páramo. Mas há quem passe a vida correndo atrás da literatura e nunca a alcança ( perdoe a maldade).

O leitor torna-se cúmplice do escritor em qual momento?

Penso que o leitor se torna cúmplice do escritor quando ele encontra um pouco dele mesmo, no texto que lê. Ou descobre  nele um companheiro que soube dizer ou questionar saberes, sentimentos e dúvidas.

Apenas um livro para livrá-lo do fim do mundo em uma espaçonave. O seu livro inesquecível. Qual seria?

Um livro a levar numa espaçonave? Poderia dizer, a Bíblia, onde a gente sempre encontra o que busca. Mas prefiro citar a Correspondência completa de Rainer Maria Rilke. Mais de mil páginas.

Qual a sua angústia criadora?

Não conseguir, nem ter conseguido escrever o livro que sonharia ter escrito. Talvez tenha chegado perto.

One thought on “Luzilá Gonçalves Ferreira: “são as dúvidas que nos fazem criadores””
  1. Magnífica a entrevista de Luzilá. Ela que é toda ficção. Vive em seus personagens, habita lugares de nenhum lugar, varre as folhas caídas no chão como quem varre o mundo. Para depois escrever. E escrevendo nos leva a um mundo mágico onde a busca de respostas acontece no encontro de palavras. Que nos amansam as inquietações e as dúvidas,
    Parabéns, querida amiga.

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