
Por Ney Anderson
Ser demitido pode ser um grande trauma na vida de qualquer pessoa. Principalmente agora, quando existem mais de 13 milhões de desempregados no país. Foi por conta da própria experiência que a escritora Julia Wähmann resolveu escrever o romance Manual da Demissão (Record), para refletir de maneira bem humorada e irônica sobre um dos temas mais preocupantes dos últimos tempos no Brasil.
A história é o relato fictício da personagem J., que depois de anos trabalhando em uma editora tem a rotina quebrada quando, na manhã de uma segunda-feira, o seu chefe lhe informa da sua demissão, sob a frase-desculpa: “é a crise, você sabe”. Justamente dois dias após ter sido deixada pelo namorado, ou “demitida do amor”, como ela mesma diz.
Depois disso, J. enfrenta a burocracia clássica da pós-demissão, na busca dos direitos trabalhistas, indo para sindicatos, bancos, Ministério do Trabalho, sempre narrando os fatos de forma engraçada, com humor refinado, transformando a notícia ruim em algo para o leitor sorrir. Mesmo que o sorriso seja de nervoso, porque ninguém está imune ao fantasma da perda do emprego. A capa exibe, inclusive, uma grande ferradura. Porque sorte, todos precisam ter nesse momento.
Alguns amigos de J., identificados da mesma forma por iniciais como A., B. e C., também começam a ser demitidos de variados empregos e passam a migrar para Portugal na tentativa de algo melhor, já que o Brasil parece realmente entrar numa onda decadente, que não oferece esperanças aos seus profissionais. Eles vão deixando no apartamento dela as suas caixas com os pertences que estavam nas empresas. Dentro estão não apenas objetos, mas memórias incômodas para todos eles. “Ao olhar as caixas que se acumulavam em minha casa, vi uma pequena cidade, como a que o garotinho queria construir com os blocos de madeira. Aos poucos, a sala da minha casa seria tomada por caixas de outros amigos demitidos, e eu virararia uma espécie de guru, aquela a quem eles recorriam para os primeiros socorros”.
Ela se une com amigos que também estão na mesma situação. Juntos, fazem algumas aventuras. O período é de ociosidade, organização mental, onde a praia, as bebidas, os filmes, livros e músicas são os refúgios temporários da falta de perspectiva, reforçando o sentimento momentâneo de fracasso e desesperança. “Ser demitida é uma merda. Mas, como dizem, há o passaralho e o ficaralho, e os meus colegas sofriam a síndrome da sobrevivência, enquanto sonhavam com uma vida mais Bartleby. Estávamos todos no mesmo barco”.
“A depressão do demitido começa por volta das 4h30 da tarde e se estende até umas sete da noite. Abarca o período que outrora era dedicado a ver vídeos no YouTube, seguido do terceiro café, para então encarar, no mínimo, uma hora de trânsito de volta para casa. Talvez seja a solidão súbita de não ter mais companhia para aqueles momentos em que pandas fazendo gracinhas pareciam imprescindíveis, ou talvez seja o tédio depois de um dia inteiro à deriva, mas desconfio que a causa dessa melancolia angustiada e pontual seja realmente a dificuldade de enxergar – as coisas e um futuro…. Um caldeirão de mentes criativas, sensíveis, talentosas, bem informadas que só precisavam de oportunidades para exercer seus ofícios. Se as chances estavam em Lisboa, era para lá que eu deveria ir, onde os caminhos se abririam, onde poderíamos, juntos, fazer tudo aquilo de cuja falta reclamávamos no Rio de Janeiro, e ainda descobrir toda a tristeza do fado, que comecei a ouvir em casa, a fim de ambientar os ouvidos para uma nova vida”.
O livro é formado por 24 capítulos curtos com títulos espirituosos, como Vem pra Caixa você também; Deus ajuda quem cedo madruga; Quem não chora não mama; O seguro morreu de velho; Manda quem pode, obedece quem tem juízo. Wähmann fala sério, mas em tom de sarcasmo, sobre o abismo para onde as pessoas estão sendo lançadas e tratadas como simples números estatísticos. Não por acaso, o romance se passa em 2016, num período conturbado da política brasileira.
J. entra numa onda depressiva, utilizando remédios para dormir e não ligando muito para o futuro depois que a maioria dos conhecidos se muda para a Europa. A sala dela, como a própria personagem diz, começa a parecer uma instalação de arte contemporânea, por conta das caixas empilhadas. Curiosamente um livro do Roberto Bolaño (que não se sabe qual é), músicas de rock, Bob Marley e do Só Pra Contrariar se juntam no estado de letargia da personagem, que acredita no refrão máximo do desemprego: “O que é que eu vou fazer com essa liberdade, se estou na solidão pensando em você?”. Aos poucos ela vai se acostumando com a nova realidade, fazendo trabalhos freelances e investindo em projetos com amigos. Ou seja, se adequando em novas ideias depois do grande vazio.
A protagonista cria para os amigos um manual da sobrevivência para o caso de demissão, que consiste, entre outras coisas, encontrar um depósito para guardar as caixas com os pertences que estavam na empresa; realização de tarefas burocráticas e adotar mecanismos de distração para enfrentar as filas intermináveis que o desempregado inevitavelmente vai enfrentar.
O livro, como o título pode deixar transparecer, não é uma cartilha de como agir em caso da perda do emprego. Muito pelo contrário. É ficção que ironiza a situação de crise no país, através da tragicomédia. É um grande retrato da geração atual, que está perdida, buscando alternativas para suportar o caos que parece sem prazo para acabar. É impossível não se identificar com os problemas enfrentados pela protagonista. Além de ser engraçado, Manual da Demissão é necessário. Sobretudo nesses tempos de demissões em massa, que não tem graça alguma.