Foto divulgação

Por Ney Anderson

Em um dia como outro qualquer de trabalho para a babá Maju, ela resolve raptar Cora, a filha de Fernanda e Cacá, que ela cuida já há algum tempo. A babá atravessa a praça que vai com a criança todos os dias, onde está o exército branco (como ela chama as outras babás), perto do edifício onde trabalha, pega um ônibus e desaparece com a menina. Assim começa Suíte Tóquio (Editora Todavia), romance de Giovanna Maladosso.

O livro transcorre sob dois pontos de vista. O de Maju e o da patroa. Fernanda é uma executiva de classe média alta de São Paulo, ligada ao audiovisual. Já Maju é uma mulher que sonha em ter uma família, principalmente uma filha. Mas acaba relegada ao cuidado com a menina em tempo integral, morando no apartamento dos patrões, sem tempo para si mesma, apenas um dia livre na semana para a visita íntima com o namorado. O quarto que ela ocupa no apartamento dos patrões é um cubículo batizado por Fernanda justamente de suíte Tóquio, em referência aos quartos de hotel japoneses bem equipados, embora mínimos.

Tanto que depois que ela aceitou, senti pena dela. Para compensar, transformei aquele quarto de empregada num lugar claro, descolado e dotado de amenidades como tevê e frigobar, um quarto que poderia muito bem ser a suíte de um hotel japonês. E por isso, e para me sentir menos escravocrata, batizei o cômodo de Suíte Tóquio.

A executiva, que é casada com Cacá, mas está em uma situação apática com o marido, praticamente não para em casa, e acaba se envolvendo com uma documentarista, aflorando nela algo que nunca havia existido. A experiência homossexual se apresenta como uma ponte para outra situação totalmente inédita.  

A atenção dada a menina é quase nenhuma, só os compromissos protocolares. Maju, então, resolve assumir o compromisso afetuoso, deixando de ser somente uma funcionária. A intenção dela é levar a criança para outro estado, pretendendo cuidar de Cora como uma mãe atenciosa, de fato. A partir disso, a narrativa toma um rumo totalmente incomum. Porque em momento nenhum se pretende criar herói ou bandido nessa história, mesmo que o ato do sequestro seja, claro, um ato criminoso, ainda que carregado das melhores intenções.

O livro carrega uma fluidez interessante com a história caminhando sob os dois pontos de vista. Cada capítulo é narrado por uma delas. Embora seja uma narrativa dividida em duas vozes, em nenhum momento força a mão para algum lado. Tudo é posto na mesa, mesmo que dê para notar de imediato a diferença entre as realidades. E isso é um ponto muito positivo na trama. Maju tem o sentimento de revolta por conta da submissão que foi obrigada a aceitar em tantos anos de trabalhos de servidão, deixando a própria vida pessoal em segundo plano por necessidade financeira. E o caminho que ela percorre com a menina é cheio de percalços. Com viagens atrapalhadas, caronas, paradas em postos de gasolina, em motel para passar a noite e uma série de outros riscos, tendo como base a fé, apesar do medo.

Fui até a janela da área de serviço, fiquei olhando pra fora, lembrando da fila de mulheres na agência de emprego, lembrando de mim mesma procurando serviço, das patroas que na entrevista diziam que tinham me adorado e que iam ligar logo pra eu começar mas não ligavam nunca. Ela ia me fazer morar na Suíte Tóquio, e claro que eu não queria isso, a pessoa quer ter uma casa pra de vez em quando poder sentar no sofá, escolher o que vai comer, largar um copo sujo em cima da pia.

A forma que a narrativa vai se desenrolando é muito bem articulada e prende atenção por ser uma espécie de confissão de ambas as mulheres. Da babá, explicando o ato que cometeu, seus amores fracassados, sua vida em suspensão e as ideias de futuro. E o de Fernanda, com os dilemas da maternidade, da  sexualidade, da relação com o marido e do trabalho.

As protagonistas têm os sentimentos em direções opostas, mas que acabam convergindo para o mesmo lugar. Cora é uma criança que não é acomodada tão bem na vida da mãe por conta dos inúmeros compromissos dela. A vida da menina é quase um espectro dentro da própria casa. As idas e vindas nos pensamentos dessas duas mulheres são escritas de maneira impecável. Maju é uma mulher que lê e é fã de Nora Roberts. É perceptível a transformação do pensamento dela por conta da leitura. Já Fernanda gosta de artes plásticas.

O livro vai sobrepondo situações num emaranhado que não se desconecta do seu fio central. A robustez da história ganha corpo consistente ao apresentar os dilemas das personagens, ambas gravitando em universos distintos onde o ponto de encontro é justamente a menina. Em toda a sua inocência, Cora representa o fardo para uma e a possível redenção para a outra.

Tudo na narrativa vai se desenrolando de forma não-linear, com a história de cada uma delas sendo contada pouco a pouco, indo e voltando no tempo. Passado e presente vão se fundindo para apresentar um painel completo das duas. Só apenas no vigésimo quarto capítulo é que Fernanda se dá conta do sumiço de Cora. E aí tudo se torna irrelevante depois do rapto. A noção do vazio, do abismo da culpa que ela enfrenta, sobretudo por ser considerar a partir desse momento uma mãe ausente, depois de ter delegado totalmente para uma funcionária os cuidados com a filha.

Suíte Tóquio é um livro que fala de relacionamentos, da complexidade de se colocar no lugar do outro, através de um modelo sofisticado das relações. É uma prosa gostosa de ler, bem articulada, que vai transportando o leitor pelas diversas situações que ambas as mulheres estão envolvidas. O peso da culpa de Fernanda não ter dado a atenção necessária a filha. O sentimento que a paternidade/maternidade é algo maior e mais complexo, que ultrapassa o laço puramente do sangue. A dificuldade do casal em crise (é ela quem sustenta financeiramente a família), mas que acaba se unindo, compactuando da mesma dor.

É interessante o desenho feito no livro sobre a idealização da vida de maneiras diferentes e a frieza da sinceridade dos pensamentos de Fernanda, por exemplo, de não se importar com a babá (quando a mulher e a filha estão sumidas), apenas com o desaparecimento de Cora, mostrando exatamente qual lugar os menos favorecidos ocupam na sociedade da classe média alta.

A prosa da autora é bonita e triste ao mesmo tempo. E consegue abarcar muita coisa sem tornar a história desconexa. Tem humor, drama e suspense. Para além das emoções, Suíte Tóquio é carregado por potentes imagens. Como as cenas na Floresta Amazônica, com os índios, para onde Fernanda vai se encontrar com uma cineasta que a empresa dela contratou, com o objetivo de um documentário sobre a vida animal. Ela se envolve com essa mulher e tem os sentimentos revirados do avesso. Passam a sensação exata dos dilemas e da paixão que ela começa a sentir pela outra que acabou de conhecer. A autora consegue tocar no assunto da sexualidade, que é importante na obra, sem afetação ou clichê. Tudo soa muito natural e autêntico.

São passagens muito boas de ler, interessantes visualmente, aflorada de forma mais completa quando Fernanda toma o Daime e tem uma experiência transcendental em relação ao seu lugar no mundo. Até a questão da fé, de acreditar no sobrenatural, é pontuado exemplarmente nas práticas das protagonistas. Cada uma delas (Maju e Fernanda) tem revelações ao seu modo a partir dos diferentes tipos de contato com o divino. Fernanda testa possibilidades de vida como ela nunca havia experimentado antes. E Maju também.

Suíte Tóquio faz um poderoso painel dos relacionamentos, das prioridades da vida e da crítica social sob o ponto de vista feminino em duas direções antagônicas, que consegue segurar o leitor até a última linha. O desfecho, inclusive, é literalmente uma das cenas mais comoventes da literatura atual.

O livro da Giovana Maladosso mostra a maternidade sob suspeita, em um romance fortemente marcado pela crítica social. Sobretudo quando as classes se chocam, com a ilusão da união, no ofício nada fácil da maternidade. Ser mãe, fica bastante evidente nas linhas do romance, não é apenas questão de sangue. O sequestro de uma criança é o ponto que serve para escancarar a culpa e o fardo do amor planejado, mas relegado ao cantinho mais frio da vida.

Ter um filho era uma porrada tão forte que atirava cada uma num canto do ringue, com estrelas rodando em torno da cabeça. Sem saber mais quem eram, resvalavam em extremos. Pra ser mãe, a pessoa tem que adotar o filho depois que ele nasce.  

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