Por Ney Anderson
Chega dezembro e as inevitáveis listas de melhores do ano surgem nos quatro cantos do mundo. São seleções de filmes, músicas, peças de teatro, shows, livros e muitas outras coisas. O que une essas listas é o fato de que elas já nascem injustas, pelo simples fato que toda e qualquer seleção parte do gosto pessoal de quem as fez. Por isso que escolher os melhores livros do ano, por exemplo, não quer dizer que análise foi feita através de todos os livros publicados. Essa seria uma missão impossível. Tanto é verdade que a partir do momento que a lista é publicada aparecem críticas dos leitores por determinado livro que não entrou na preferência do editor. As seleções, no entanto, são importantes porque uma lista puxa outra, que puxa outra e dessa forma muitos livros vão sendo “oferecidos” e descobertos por futuros leitores. As obras citadas, com isso, ganham vida para além dos blogs e das estantes das livrarias. Sendo assim, as pessoas acabam conhecendo a riqueza da literatura contemporânea do Brasil e de outros países.
Essa seleção é a primeira feita pelo Angústia Criadora em mais de três anos, servindo apenas como um pequeno, ou pequeníssimo, recorte da produção literária atual. Alguns romances e livros não entraram na lista, mesmo com a grande aceitação dos leitores e críticos por tais obras, caso de O Pintassilgo, da escritora Donna Tartt, vencedor do Prêmio Pulitzer, e A Balada de Adam Henry, de Ian McEwan, justamente porque esses livros não foram lidos ainda pelo editor do blog. Portanto, a lista foi feita, única e exclusivamente, pelos livros realmente lidos e estudados.
O ano de 2014 foi bastante produtivo para as editoras do país e também para leitores, com lançamentos e relançamentos de autores importantes, como a caixa com três romances publicada pela Editora Rocco do prêmio Nobel de 2014, Patrick Modiano, por exemplo. Quando se fala em literatura no Brasil é impossível não mencionar a Editora Record, que tem no seu catálogo 16 selos, e a Companhia das Letras, com 13 selos, e ainda a Editora Objetiva, com 5 selos, entre eles a Alfaguara. Também a Rocco, Cosac Naify e Intrínseca. Mais outras grandes editoras sempre estão no páreo com bons lançamentos, como é o caso da Globo Livros, Sextante, LeYa, L&PM, Zahar e Iluminuras. Mas nem só de grandes editoras vive o mercado brasileiro, as pequenas e médias se fazem presentes com constantes surpresas de real qualidade literária, como é o caso da Martins Fontes, Martin Claret, Editora 34, Ateliê Editorial, Edith e Confraria do Vento.
Em relação aos vencedores dos principais prêmios do país, destaque para Everardo Norões, vencedor do Portugal Telecom na categoria contos com o livro Entre Moscas, que será resenhado em breve no blog, e Sérgio Rodrigues, que ganhou o mesmo prêmio na categoria romance com o Drible, talvez o principal livro de ficção sobre futebol dos últimos tempos. O Prêmio São Paulo de Literatura premiou pela primeira vez uma mulher na categoria principal, que foi Ana Luisa Escorel, com Anel de Vidro (Ouro Sobre Azul). Quem ganhou o Machado de Assis da Biblioteca Nacional deste ano foi o pernambucano Marcelino Freire com o romance de estreia Nossos Ossos, publicado em 2013. Débora Ferraz, também pernambucana, venceu o Prêmio Sesc de Literatura e teve o livro Enquanto Deus não está olhando, publicado pela Editora Record. Na 56ª edição do prêmio mais prestigiado do país, o Jabuti, os destaques ficaram por conta de Rubem Fonseca, com o livro Amálgama (categoria contos), Bernardo Carvalho, com Reprodução (categoria romance), Laurentino Gomes com 1889 (categoria reportagem) e Lira Neto, com a excelente biografia Getúlio, do ex-presidente do Brasil Getúlio Vargas. O prêmio Jabuti ainda premiou os escritores Michel Laub (A Mação Envenenada), Verona Stigger (Opisanie Świata), Rodrigo Alzuguir (Wilson Baptista: o samba foi sua glória), Mary Del Priore (O castelo de papel), Daniela Arbex (Holocausto brasileiro), Vera Gerte (Um gosto amargo de bala). Confira a seleção dos dez melhores lançamentos do ano, de acordo com o Angústia Criadora:
Dias Perfeitos, Raphael Montes – Companhia das Letras.
Raphael Montes não é bem uma revelação literária do ano, apesar de muita gente pensar que é. Ele já publicou o ótimo livro Suicidas (Editora Benvirá) em 2012. Mas o romance Dias Perfeitos, sem dúvida, fixou o nome do autor entre as grandes apostas do futuro literário do país. Raphael, que tem apenas 24 anos, criou um suspense policial para fã nenhum do gênero botar defeito. Com uma trama bastante forte, de um jovem (Téo) que tem uma paixão súbita não correspondida por uma garota (Clarice), e resolve sequestrá-la, dopando Clarice e depois transportando a garota numa mala, dentro do carro, por vários pontos do Rio de Janeiro, na tentativa dela saber do “verdadeiro” amor de Téo e assim corresponder igualmente. De todas as qualidades do livro, a maneira coma a psicologia do personagem Téo é trabalhada é o principal delas. Sem contar as muitas reviravoltas interessantes do livro. Boa dica para quem gosta de thrillers de mistério. O livro vai ser publicado em vários países e já teve os direitos vendidos para o cinema.
Um homem burro morreu, Rafael Sperling – Editora Oito e Meio
Dizem os mais críticos que não se deve julgar um livro pela capa. Eu até concordo com isso, mas uma livro de ficção, principalmente agora na era da tecnologia virtual, precisa ser agradável também no aspecto visual. Um homem burro morreu, de Rafael Sperling, tem o mérito de ter uma das capas mais originais do ano, e também com os vinte e sete contos escritos magistralmente. Os textos são na maioria narrativas críticas, feitas através de sarcasmos e ironias de assuntos aparentemente banais, presentes em diversos setores da sociedade. Os contos são curtos, alguns de forma experimental, o que pode afastar leitores que gostem de histórias diretas. Mas o esmero e a qualidade textual da ficção de Rafael vale a leitura.
Sofia, de Sidney Rocha – Editora Iluminuras
Sidney Rocha está constantemente disputando os prêmios literários e o interesse dos leitores. Não é para menos. A prosa do autor é de uma qualidade inigualável. Sidney é desses escritores que realmente se preocupam com a “carpintaria” da obra, ou seja, nada sobra nos seus livros, tudo o que está presente nos romances e contos tem causa, função e efeito. Por isso que o romance Sofia é tão importante na biografia do autor. O livro não é necessariamente novo, por já ter sido publicado originalmente há 20 anos, também teve uma segunda versão bilíngue em 2005. Mas a preocupação do autor em encontrar o ponto certo do romance talvez tenha impulsionado esse desejo de fazer uma terceira versão de Sofia. E de fato é uma nova versão, onde Sidney tirou o cenário e passagens, segundo ele, desnecessárias nesse momento, para dar foco na linguagem e na psicologia dos personagens centrais, principalmente nos momentos da busca por uma Sofia que não se sabe ao certo se é real ou apenas imaginação do narrador. O texto é de uma poesia absurda, que encontra o ápice maravilhoso de uma verdadeira obra de arte. “À época, era uma ideia bem próxima ao que me fascinava, aos 20 anos: a psicologia Junguiana. Era uma espécie de arquétipo, sem que fosse a sombra, e nem tanto o self. Era algo onde se pudesse estabelecer a linguagem, mas fora do sujeito. A personagem foi tomando muito “corpo” e fugiu do princípio geral. E, agora, mais ainda o narrador, sobretudo nessa edição, por isso um romance totalmente novo”. Um livro importante, sobretudo, para quem estuda as técnicas para criação de um romance.
O Romance do Bordado e da Pantera Negra, Raimundo Carrero e Ariano Suassuna – Editora Iluminuras
Um achado arqueológico. Assim Raimundo Carrero definiu a descoberta desse conto armorial, desaparecido há quase cinquenta anos, depois que uma enchente atingiu o Recife e levou nas águas o manuscrito. Encontrado pelo agente de Carrero, Stéphane Chao, o texto foi, enfim, publicado em edição cuidadosa, com ilustrações de Marcelo Soares, e o folheto de cordel que Ariano Suassuna escreveu na época em homenagem ao conto. Para além do ineditismo do texto, com essa publicação é possível começar a entender a gênese de um dos maiores escritores da atualidade. No Romance do Bordado e da Pantera Negra já estava o embrião de tudo o que Raimundo Carrero escreveria nos anos seguintes, principalmente os dramas humanos. De fato é um achado importantíssimo para a literatura brasileira. Ainda mais pela forte ligação entre Carrero e Ariano, falecido esse ano.
O Céu não sabe dançar sozinho, de Ondjaki – Editora Língua Geral
O escritor angolano Ondjaki é um dos autores africanos mais destacados no Brasil, produz uma ficção sempre original, apesar da grande quantidade de livros que ele já publicou (19 ao todo). O título mais conhecido dele é o Bom dia, Camaradas (Cia das Letras). Seu livro mais recente publicado no Brasil é O céu não sabe dançar sozinho, trata um pouco da convivência com outros povos, através de contos ambientados em Buenos Aires, Budapeste, Madrid, Macau, Praga, entre outras cidades. O livro fala, sobretudo, dos protagonistas que sempre estão de passagem por esses lugares. Alguns contos são narrados por escritores que, aparentemente, podem ser ele mesmo. No livro existe uma oralidade muito grande, de quem quer contar uma história, ou várias histórias, sem se preocupar muito com cenas e cenários, apesar de eles estarem lá na fala dos personagens. Detalhe para o conto Laranjeiras, ambientado no Rio de Janeiro, onde o ator Lima Duarte virou personagem. Não apenas ele, mas dois de seus personagens mais famosos na TV: Sinhozinho Malta e Zeca Diabo. No texto, o narrador não sabe com qual dos “três” está falando tamanha a euforia. O conto tem uma memória afetiva bastante forte, de alguém apaixonado por novelas.
A Festa da Insignificância, de Milan Kundera – Companhia das Letras
Existe sempre euforia quando um nome mundial da literatura lança uma nova obra. Ainda mais quando esse nome é o de Milan Kundera, escritor icônico, que ficou conhecido mundialmente depois de publicar o clássico A insustentável leveza do ser, romance que fez a cabeça das pessoas na década de 1980. Essa nova obra, primeiro romance inédito depois de quatorze anos, não é excepcional, mas é elegante, irônica, comovente, intensa em relação à construção de uma época, dos tempos atuais, com personagens bem construídos. O livro fala, sobretudo, de “personagens fantoches”, de um mundo onde o que importa são as festas, do convívio raso entre as pessoas. Kundera escreve nesse livro sobre as coisas pré-determinadas que a vida contemporânea vai impondo sem que ninguém perceba claramente. Por isso que o título, A festa da insignificância, onde tudo virou banal, é tão certeiro. É algo que o leitor vai tentando captar a ideia central, porque não tem essa de começo, meio e fim. Um paralelo com o romance é o filme A Grande Beleza, do italiano Paulo Sorrentino, que é uma crítica a sociedade de glamour brega e pseudo-intelectuais, onde todos perdem a noção da realidade e civilidade, reagindo através de impulsos em situações absurdas de superficialidade. Tanto no filme quanto no livro o que realmente importa não faz o menor sentido nesse mundo banal, de mentiras e estereótipos, e por isso vazio. É essa futilidade dos tempos atuais que Milan Kundera soube captar tão bem nesse pequeno grande livro, que foi lançado em edição de luxo. O romance narra a vida de cinco amigos em Paris, presos nessa banalidade cotidiana, num mundo desprovido de real sentido. Para se ter uma ideia de toda a ironia, em determinado capítulo, um dos personagens se pergunta o motivo do umbigo feminino hoje em dia ser o centro do erotismo, e não mais os seios ou pernas das mulheres.
Biofobia, de Santiago Nazarian – Editora Record
Santiago Nazarian é uma das vozes mais originais da literatura brasileira, com obras que trafegam pelo suspense, thrillers psicológicos, e até mesmo pelo universo juvenil, ainda que a pegada seja a mesma, mas em menor tom, das obras para o público adulto. O mais recente lançamento de Nazarian, Biofobia, é um romance forte sobre a vida de um rockstar decadente e neurótico, que perde a mãe, escritora, de maneira estranha e tem que resolver questões sobre a propriedade dela, uma grande casa no meio do mato. O mato, aliás, é a base de toda a neurose do protagonista André, que vê a casa sendo “invadida” pela vegetação, não se sabe se por delírio ou realidade. O jogo narrativo feito pelo autor é surpreendente, sem entregar demais a trama, lançando boas pitadas de terror ao longo do livro. O leitor acompanha de forma privilegiada toda a loucura do rockeiro, mas sem saber ao certo onde tudo vai parar, até o desfecho do livro, que também não é o ponto final da história, de certa maneira, já que não é um encerramento clássico de um livro de terror. Geralmente esse tipo de história pende para o clichê, no entanto, os elementos que Santiago utilizou fogem ao comum. O existencialismo bizarro, como o autor define a própria obra, parece ter encontrado aqui seu ponto máximo, amadurecido, de todas as formas possíveis. E ainda mais por conta da fluidez e da maneira elegante da escrita de Nazarian. Quem acompanha o autor deve ter ficado bastante feliz com Biofobia, para os não iniciados ao estilo dele, o novo romance é uma escolha sem erros. O livro, inclusive, vai ser adaptado para o cinema. Todos os ingredientes para uma história de terror estão lá, misturados de forma competente: algumas mortes, pequenos mistérios nunca relevados, caso de amor mal resolvido, parentes distantes, problemas com a irmã, drogas e sexo. Hitchcock disse uma vez que todos os personagens e situações nas história dele precisavam ter uma função, não apenas para “enfeitar” a trama, e Nazarian consegue, nesse livro, dar toda a importância e dimensão em todo os aspectos ao romance.
Enquanto Deus não está olhando, Débora Ferraz – Editora Record
O prêmio Sesc de Literatura tem um papel fundamental para divulgar novos nomes. Tem feito isso brilhantemente, e já revelou autores como André de Leones e Luisa Geisler, por exemplo, e agora a pernambucana Débora Ferraz, vencedora da edição desse ano com o livro Enquanto Deus não estão olhando. Seria muito difícil esses autores publicarem por grandes casas editoriais não tendo uma trajetória, pois o prêmio dá ao autor o direito de ser publicado pela editora Record. O romance de Débora foi uma grata surpresa esse ano, e mais ainda pelo drama bem costurado de uma filha que perdeu o pai. Érica Valentim é uma pintora, que nunca teve essa escolha profissional apoiada pelo pai, e por isso sofre com a reprovação. Nesse belo romance de 366 páginas, acompanhamos os pequenos dramas diários dessa protagonista com tantos questionamentos e buscas. O livro é extenso e utiliza uma cronologia não-linear. Débora Ferraz conseguiu criar diálogos muito bem feitos e também um silêncio profundo, com muitas coisas ditas apenas nas entrelinhas. Um romance interessante na forma e no conteúdo, e ainda por cima com um título incrível.
Misery – Louca Obsessão, de Stephen King – Suma de Letras
Stephen King é o mestre do terror, seus livros já venderam milhões de cópias ao redor do mundo. Ele conseguiu, e consegue até hoje, a difícil tarefa de agradar uma legião de fãs e também os críticos mais ferrenhos, por conta da qualidade inquestionável da sua ficção. Alguns livros do começo da carreira estão esgotados há anos, só existindo nos sites de vendas com preços elevados. Um desses romances esgotados foi relançado em 2014 para a alegria dos admiradores. Trata-se de Misery – Louca Obsessão, lançado originalmente em 1987, uma espécie de livro cult entre os fãs. E não poderia ser mais acertada a escolha. O romance é um grane suspense, e virou filme em 1990, dando o Oscar de Melhor Atriz para Kathy Bates. É a história do personagem Paul Sheldon, um famoso escritor de best-sellers, que sofre um acidente de carro durante uma nevasca e é resgatado por Annie Wilkes, uma mulher que se diz a fã número um dele, e o leva para uma casa no meio das montanhas, sem informar nada para ninguém. Annie Wilkes é uma dessas pessoas aparentemente normais, mas que cometem absurdos por justificativas pífias, onde a única classificação possível talvez seja chamá-la de psicopata ou algo do tipo. Todo o terror, suspense, medo, tensão, estão presentes nessa história, que comprova a capacidade de criação de uma das mentes mais brilhantes do universo literário. É muito bom poder ler esse livro de começo de carreira e saber que Stephen King continua até hoje com a mesma criatividade de sempre. Tanto é que foi lançado também esse ano o romance inédito Doutor Sono, continuação de O Iluminado, um dos maiores sucessos da sua carreira.
O Fundo do Céu, Rodrigo Fresán – Cosac Naify
O romance O Fundo do Céu, do argentino Rodrigo Fresán, teve a proeza de agradar amantes da ficção científica, mesmo o livro não sendo do gênero propriamente dito, e amantes da literatura em geral. Na verdade é uma grande homenagem às histórias de ficção científica, com referências explícitas a nomes como Bioy Casares, Philip K. Dick, Stanley Kubrick, Arthur C. Clarke, a série Jornada das Estrelas e muitos outros. Todas essas referências se misturam na história central, que por incrível que pareça, é de amor entre Isaac, Erza e uma misteriosa mulher. Todos esses personagens são escritores de….ficção ciêntifica. O livro [e ambientado nos Estados Unidos no intervalo de oitenta anos, começando na década de 1930 até os dias atuais, utilizando ironicamente o tempo, algo bastante explorado na ficção científica. Por falar nisso, Fresán disse esse ano, em palestra no Recife, que sempre utiliza personagens escritores nos seus livros, justamente para buscar um sentido mais real para a literatura que produz, como se o fato de utilizar esses personagens o forçasse sempre a tentar descobrir o que é a arte das palavras. É um livro fácil de entender para quem está concentrado nele, mas qualquer distração põe tudo a perder, por isso tenha calma e atenção na hora da leitura desse romance. Passado, presente e futuro se misturam nessa trama ímpar, que não teve tanta divulgação no país, mas que sem dúvida ainda vai ser lido e descoberto por muita gente. Na orelha do livro o escritor e músico Tony Bellotto diz que esse romance é na verdade um grande quebra-cabeça, então relaxe e compre um saco de pipoca, como alguém que se prepara para ver um filme no cinema. É o melhor conselho que pode ser dado em relação ao excelente O Fundo do Céu, um livro que já nasceu clássico. Para mim, o melhor do ano.