Crédito: Rodrigo Cruz

Por Ney Anderson

Em homenagem aos 10 anos do Angústia Criadora, escritores de todo o país falaram com exclusividade ao site sobre literatura, processo criativo, a importância da escrita ficcional para o mundo e para a vida e diversos outros assuntos. Leia a entrevista a seguir com o convidado de hoje. Divulgue nas suas redes sociais. Acompanhe o Angústia Criadora também no Instagram: @angustiacriadora e Facebook: https://facebook.com/AngustiaCriadora

 

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Melissa Suárez é formada em Letras, pelas letras e também licenciada por elas. Professora em estado latente, espera a educação básica voltar a requerer professores e não replicadores automáticos de livros didáticos e aplicadores  compulsivos de provas para voltar lecionar. Escritora regular, poeta bissexta e dramaturga emergente ( conforme premiação  em 2018 pelo Corredor Latinoamericano de Dramaturgia). No sumo, é uma poliamorosa de linguagens. É  autora do livro de contos Travessências.
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O que é literatura?

A primeira definição que me vem ao ler essa pergunta é a do Terry Eagleton, gosto tanto dela. Ele diz que o termo “literatura” funciona como a palavra “mato”, mas de forma inversa, pois “mato” designa todas as plantas que um jardineiro não quer no seu jardim, enquanto Literatura designa todo trabalho artístico com a palavra que é desejável.

Separar o desejável e o indesejável e por quais critérios é mutável, a depender das pessoas que decidem e da constante troca de “pessoas que decidem” ao longo do curso da História. Eu sou a favor de incluir os matinhos na Literatura, porque delimitar o jardim? Floresçamos!

O que é escrever ficção?

É colocar em foco sob holofote um pedaço da vida real.

Escrever é um ato político? Por qual motivo?

Sim, porque é social. Mesmo o escritor iniciante mais inseguro e solitário prevê um leitor, e mais de um, prevê alcançar quem não conhece. Qualquer ato de um ser humano que envolva a consideração a outro ser humano é um ato político.  Assim, a escrita é uma prática concreta com significado social e que não se faz isolada.

Para além do aspecto do ofício, a literatura, de forma geral, representa o quê para você?

Literatura é minha vida. Sou leitora ávida desde que fui alfabetizada. Aliás, uma das histórias de família mais famosas sobre mim é que eu aos 4 e 5 anos perguntava constantemente à minha mãe e às professoras quando eu ia aprender a ler, tenho memória dessa expectativa. Quando eu era mais velha, mas ainda estudante e me diziam “Logo você não terá tanto tempo para ler” porque eu me formaria e então entraria para o mercado de trabalho, eu ficava desesperada. Não consigo imaginar uma existência sem livros.

O escritor é aquela pessoa que vê o mundo por ângulos diferentes. Mesmo criando, por vezes, com base no real, é outra coisa que surge na escrita ficcional. A ficção, então, pode ser entendida com uma extensão da realidade? Um mundo paralelo?

Acho que é mais uma lente que um mundo paralelo. A escrita ficcional coloca uma lupa, um foco, ou como disse Érico Veríssimo, coloca uma lâmpada, uma vela ou só um fósforo onde falta luz para que seja possível iluminar e distinguir as sombras. Isso quando o objetivo é a denúncia. Mas essa lente ou essa lâmpada que é a escrita ficcional pode estar querendo mostrar o corriqueiro que passa despercebido, ou fazer sentir, ou… ou… várias são as possibilidades.

Crédito: Eduardo Leandro

Quando você está prestes a começar uma nova história, quais os sentimentos e sensações que te invadem?

As sensações e os sentimentos primeiro me invadem e então eu escrevo a história. Não consigo descrevê-los senão através da narrativa e como a escrita é sempre insuficiente para contê-los, ou sequer delineá-los,  a necessidade de escrita nunca acaba.

Minto, as sensações e os sentimentos primeiro me invadem então eu anoto algumas frases no que tiver à mão: papel de rascunho, celular… Depois, geralmente outro dia, mais calma eu escrevo a história das sensações e sentimentos que me invadiram, afinal qualquer escritor é como o poeta, um fingidor.

A leitura de outros autores é algo que influencia bastante o início da carreira do escritor. No seu caso, a influência partiu dos livros ou de algo externo, de situações cotidianas, que te despertaram o interesse para a escrita?

Com certeza a influência para que eu começasse a escrever partiu dos livros. Talvez essa angústia por aprender a ler já estivesse preparando o caminho para a escrita como sequência natural.  Não sei se foi A fada que tinha ideias de Fernanda Lopes de Almeida ou A bolsa amarela de Lygia Bojunga que me instigaram a escrever. Afinal, meu “primeiro livro” comecei a escrever com nove anos e parei, fiz e refiz até terminá-lo aos 12. Sei que, desde os 9 anos, escrever era a certeza de caminho que só consegui começar a trilhar adulta.

Você escreve para tentar entender melhor o que conhece ou é justamente o contrário? A sua busca é pelo desconhecido?

Como estou começando, escrevo para entender melhor o que conheço, o que leva à descoberta de que desconhecemos muito do que achamos que conhecemos. Mas quero chegar sim a explorar o que me é completamente estranho, no futuro.

O que mais te empolga no momento da escrita? A criação de personagens, diálogos, cenas, cenários, narradores….etc?

A busca pelo formato para aquela narrativa específica.

Um personagem bem construído é capaz de segurar um texto ruim?

Paradoxal essa pergunta, não acho que são itens que se separam. Se o personagem é bem construído então o texto está bem construído. Se o texto está ruim falta algo na construção, inclusive do personagem.

Entre tantas coisas importantes e necessárias em um texto literário, na sua produção, o que não pode deixar de existir?

Tema que purgue minhas dores ou que me alegre e que possa servir para alegrar quem me lê ou purgar suas dores.

Nesse tempo de pandemia, de tantas mortes, qual o significado que a escrita literária tem?

Excelente pergunta. Não sei, talvez ninguém saiba. Só saberemos se há um significado, ou melhor, só criaremos um significado, escrevendo.

No Brasil, o ofício do escritor é tido quase com um passatempo por outras pessoas. Será que um dia essa realidade vai mudar? Existem respostas lógicas para esse questionamento eterno?

Essa visão só irá mudar quando a diminuirmos drasticamente a desigualdade social brasileira. Afinal se a até o Estado, que deveria cuidar da educação dos brasileiros e zelar pelos bens culturais do país tem um órgão como a Receita Federal que considera que livro é coisa de rico, como que a sociedade brasileira, em sua maioria sem acesso à literatura, vai não pensar que escrita é passatempo, que é coisa de gente com dinheiro?

A imaginação, o impulso, a invenção, a inquietação, a técnica. Como domar tudo isso?

Não se doma, convive-se. Tenta-se colocar todo esse povo aí pra conversar, tem dia que funciona melhor que outros, tem dia que não funciona ponto.

A imaginação é a louca da casa, o impulso é seu primo-irmão. Não é possível convencer os loucos a não se pendurar no lustre a não dormir em telhados… Mas a imaginação enquanto ideia de história precisa ser delimitada pela técnica.  Então a invenção coloca imaginação, impulso e inquietação para ferver no béquer da criação, mas é preciso técnica para saber a temperatura e tempo de cozimento para se chegar a algum resultado. E muitas vezes o resultado é diferente do que se imaginava alcançar, e é isso, é assim mesmo.

O inconsciente, o acaso, a dúvida…o que mais faz parte da rotina do criador?

… a intuição, a técnica,  a insegurança, a criatividade,  o medo, a pesquisa…

O que difere um texto sofisticado de um texto medíocre?

Depende do que se entende por sofisticado ou medíocre. A depender do entendimento vamos voltar ao Terry Eagleton da 1ª pergunta e tradicionalmente o texto sofisticado é aquele celebrado como Literatura e o texto “mato” é o medíocre. A história da literatura nos mostra que é só uma elite cultural passar a ter mais influência e poder que as definições se invertem e o que era mato passa a ser considerado Literatura.

Mas não posso ser ingênua e não dizer que não existe o texto ruim. Eu diria que um texto medíocre é um texto com pressa.

Claro que dá para escrever bons textos rapidamente, mas quando se está iniciando no ofício em si, ou em novo tema, ou encarando um novo formato é necessário tempo. Tempo de estruturação, de maturação, tempo para lapidação.

Vejo muito isso nos meus próprios primeiros escritos em que a ânsia de me expressar substituiu o trabalho mais apurado do texto.

O leitor torna-se cúmplice do escritor em qual momento?

Na hora em que lê a primeira página do livro.

O leitor ideal existe?

Não. Nem é desejável que exista.

O simples e o sofisticado podem (e devem) caminhar juntos?

De novo, o que se entende por sofisticado e por simples? E esse caminhar é qual? O de livros simples e livros sofisticados ambos com as mesmas oportunidades no mercado editorial? Ou uma autora ou autor que ora escreve de forma simples e ora de forma sofisticada? Em termos gerais digo sim a tudo isso.

Cite um trecho de alguma obra que te marcou profundamente.

“(…) Todo o poeta, todo o artista é artesão duma linguagem. Mas o artesanato das artes poéticas não nasce de si mesmo, isto é da relação com uma matéria, como nas artes artesanais. O artesanato das artes poéticas nasce da própria poesia à qual está consubstancialmente unido. Se um poeta diz «obscuro», «amplo», «barco», «pedra» é porque estas palavras nomeiam a sua visão do mundo, a sua ligação com as coisas. Não foram palavras escolhidas esteticamente pela sua beleza, foram escolhidas pela sua realidade, pela sua necessidade, pelo seu poder poético de estabelecer uma aliança. E é da obstinação sem tréguas que a poesia exige que nasce o «obstinado rigor» do poema. O verso é denso, tenso como um arco, exactamente dito, porque os dias foram densos, tensos como arcos, exactamente vividos. O equilíbrio das palavras entre si é o equilíbrio dos momentos entre si (…)”

Trecho de Arte Poética, de Sophia de Mello Andresen

Apenas um livro para livrá-lo do fim do mundo em uma espaçonave. O seu livro inesquecível. Qual seria?

São sempre terríveis essas perguntas de “escolha um”. A coisa que eu menos sei fazer é escolher uma obra só de qualquer arte, mas vou ficar com Todos os contos de Clarice Lispector, porque Clarice sempre se revela de forma diferente e instigante a cada leitura, não são todos os autores que conseguem isso.

Qual a sua angústia criadora?

A minha angústia existencial e a minha angústia criadora se misturam, não sei discernir qual é qual. A angústia principal é como transformar a minha escrita, esse modo de cura da minha existência, útil a outras existências.

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