Por Ney Anderson

Após três anos do último livro publicado, o escritor Santiago Nazarian retorna com o terror Neve Negra, a estreia dele pela Companhia das Letras. Se o livro marca a estreia do autor por uma nova casa editorial, o enredo também é algo inédito na produção dele. Embora já tenha flertado com o gênero em várias obras, esse é o primeiro que ele desenvolve totalmente com enfoque no gênero terror, ou pós-terror, como está sendo associado esse novo trabalho.

Neve Negra se passa na Serra Catarinense, no dia mais frio do ano, na fictícia cidade Trevo do Sul, onde o artista plástico Bruno Schwartz mora com a esposa Bianca e o filho Alvinho, de sete anos. Morar não é o termo mais correto, nesse caso, porque o artista é um profissional de sucesso e viaja o mundo expondo as suas obras. Ele quase não tem tempo para a convivência doméstica. A história se passa entre a noite e a alta madrugada.

Quando o artista volta para casa depois de uma viagem internacional, ele encontra a família dormindo, por já ser tarde da noite. É justamente nesse dia que o tempo está bastante incomum, com a neve fazendo parte da paisagem. Bruno está exausto e não acha ruim o fato de não ter tido uma recepção mais calorosa. Ele começa a se embebedar para relaxar e também amenizar o frio, já que a casa não é preparada para este clima. 

Já nas primeiras páginas ele começa a se questionar sobre a condição de marido perfeito e pai exemplar. Para Bruno, que também é o narrador da obra, as coisas só funcionam no campo da teoria, porque na prática a realidade é um desastre. O começo do livro mostra o artista totalmente desconfortável na condição de pai. Ele não se reconhece totalmente nessa função, se considera ausente e tem uma visão pessimista do conceito de família.

O protagonista é alguém com uma visão totalmente distorcida não só das relações familiares, mas da própria arte que produz. Isso fica claro desde a primeira página. A personalidade dele já é colocada à mostra logo nas linhas iniciais, e a casa em Trevo do Sul só reforça essa ambiguidade de Bruno.

O local onde mora é estranho para ele, por passar tão pouco tempo e também por ter pertencido ao avô e ao pai, que morreram na residência. Bruno acha que será o próximo a morrer lá, inevitavelmente, seguindo a ordem natural da vida ou de algum tipo de maldição. Para o leitor entender esse sentimento, o autor utiliza de algumas digressões, apresentando o passado, as dúvidas e os questionamentos do personagem.

Nazarian explora todo o existencialismo bizarro do protagonista para criar situações de terror 

Parece que nada está acontecendo no começo do enredo, porque tudo se passa na cabeça do artista. Todos os questionamentos em ser pai, marido, artista de sucesso, homen de meia idade, planos para o futuro etc. Tudo isso acontece de maneira vertiginosa na mente de Bruno.

“Esta casa tem uma carga. Meu avô morreu aqui, meu pai morreu aqui, e isso só começa a parecer sinistro agora, quando posso ser o próximo. Quando resolvemos nos mudar, nunca nos incomodou o fato de a casa já ter duas, talvez mais mortes no histórico. Provavelmente isso foi o que a tornou tão aconchegante, convidativa, um bom lugar para terminar a vida. Os planos eram esses, não eram? Terminar aqui? O plano inicial nunca havia sido começar uma nova vida aqui. O plano nunca havia sido começar uma família”

Elementos estranhos vão sendo inseridos aos poucos, quando toda a questão existencialista do protagonista já está exposta. Tudo começa quando ele vai até o banheiro e na volta percebe manchas de sangue no chão da sala, que se estendem até a casinha de Pretinha no quintal, a cachorra belga de estimação, que está com um grave ferimento e morre poucos minutos depois. Logo após essa cena ele ouve o grito do filho Alvinho.

Quando Bruno chega ao quarto do garoto, o menino está assustado por conta de um pesadelo. O artista percebe animais empalhados decorando o ambiente e não entende como a esposa permitiu a entrada daqueles objetos. Durante boa parte do livro, aliás, a mulher não aparece, reforçando todo o clima sombrio do romance. A partir dessa situação, o filho começa a adotar comportamentos estranhos, que não condizem em nada com a criança que ele é, de fato.

Aparece um novo elemento na trama, alguém que está rondando a casa naquele momento e é visto por Bruno Schwartz, que logo resolver saber quem é. A figura esquisita é o vizinho Thomas Schimidt, escritor de histórias infantis macabras, que mora com o avô, o senhor Grüne, um taxidermista. O rapaz dá a ideia de enterrarem a cachorra e no meio dessa atividade ele fala sobre a relação próxima com a mulher e com o filho do artista plástico. O escritor conta também a história do Trevoso, uma entidade maligna que sai da floresta na noite mais fria do ano para buscar abrigo na primeira casa que encontra, mata o morador mais velho e ocupa o lugar do mais novo.

Por conta disso Bruno começa a suspeitar que o menino não é o filho dele, mas sim a figura maligna que o rapaz falou. O livro descamba, então, para o verdadeiro terror proposto pelo autor. Neve Negra toma um ritmo tenso, vertiginoso, com várias cenas de ação e embates com a figura do Trevoso, que não se sabe se realmente é uma entidade ou algum tipo de alucinação ou confusão da cabeça do narrador. 

“A casa permanece em silêncio, e cruzo a sala, descalçando os sapatos ensanguentados. Subo as escadas em passos agora invisíveis; passo pelo meu quarto, que permanece com a porta fechada. Estranho minha mulher não ter escutado Alvinho. Penso se pode ter sido o grito de um animal, o berro de um vizinho, uma tevê transmitindo o grito de um animal na casa do vizinho, fazendo-o berrar. A próxima casa fica a poucos metros, mas não creio que eu poderia ouvir. Minha mulher dorme logo ao lado, e não acredito que não tenha ouvido. Entro no quarto de Vinho, acendo a luz e ele vira a cabeça sobressaltado. Está sentado na cama. Tem os olhos molhados. Olha-me como se não me reconhecesse, despertando de um sonho. “Filho…o que foi?!””

 

Boa parte dos elementos do terror estão presentes nesta nova obra de Nazarian: portas batendo, pouca iluminação, personagens escassos, casa isolada, noite, neve e elementos sobrenaturais. O romance provoca reações de medo, mas sem forçar a barra para os habituais excessos de susto. A história prende a atenção por elevar o mistério para um outro patamar, porque trabalha com o psicológico do personagem de uma maneira mais elevada, assombrosa, através da narrativa não-linear. São muitas situações envolventes nesta obra, que se sustenta, sobretudo, nos momentos de suspense e delírio, com o protagonista parecendo estar alucinado. 

Embora diferente do romance anterior, Biofobia, o protagonista de Neve Negra tem a essência muito parecida com André, o roqueiro fracassado. Enquanto Bruno é um artista plástico renomado, André é um cantor esquecido, que ficou no passado. Mas ambos estão na meia idade e enfrentando questões existenciais e de horror muito parecidas. Ambas as histórias têm a natureza como pano de fundo poderoso. Neve Negra, no entanto, é mais denso, um thriller agitado. O romance se assemelha com muitas obras do gênero, principalmente do cinema de terror, referência incontestável nesta obra.

Numa fase em que as produções cinematográficas têm apostado em filmes de terror sem tanta obviedade, a literatura brasileira parece trilhar pelo mesmo caminho, com obras à altura do gênero. O novo romance de Santiago Nazarian é um belo exemplo disso. O livro, inclusive, foi uma encomenda da produtora RT Features, do excelente filme A Bruxa. Realmente é difícil não imaginar esse livro no cinema, por conta de toda a questão imagética, mas acima de tudo pelo personagem bem construído, que transita entre o real e o onírico.

Nesse romance, Santiago Nazarian consegue chegar ao ápice do “existencialismo bizarro”, como ele próprio costuma classificar os personagens das suas obras. A forte carga dramática faz desse livro o mais habilidoso da carreira do escritor. Neve Negra nos lembra como é bom ficar imerso numa boa e velha história de terror.

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