Por Ney Anderson

Umberto Eco ficou mundialmente famoso com a publicação do romance policial O nome da rosa, que depois virou filme com Sean Connery no papel principal. A prosa do italiano logo agradou os fãs de suspense e também os críticos, que viram no escritor um novo representante de peso na literatura. O reconhecimento aconteceu principalmente por conta do uso cuidadoso com a linguagem, dos personagens desenvolvidos com maestria e do perturbador enredo. Todos esses elementos fizeram do primeiro romance de Eco um clássico imediato.

O último livro de ficção do autor Italiano também flertou com o gênero policial, tendo o jornalismo como a base de toda a história. O romance Número Zero (Editora Record) tem a trama focada no jornal Amanhã, que tem por objetivo caluniar e chantagear pessoas poderosas, na intenção de apoios políticos para o fundador da publicação, o comendador Vimercate. O curioso é que o jornal nunca sai de verdade. O romance se passa em Milão, no ano de 1992, época marcada por fortes escândalos de corrupção na Itália, culminando na operação Mãos Limpas, responsável por julgar políticos e grandes empresários.

A equipe editorial é formada principalmente por Colonna, tradutor de alemão e Ghost White; Maia, redatora em início de carreira, que participou de outro jornal sensacionalista; Braggadocio, um experiente repórter; e o chefe de redação Simei. Todos liderados por Vimercate. Umberto Eco disse em entrevistas que se inspirou em Carmine Pecorelli, que produzia um periódico para ameaçar gente do poder com divulgação de notícias pessoais e constrangedoras. Acabou sendo morto. Número Zero fala de fatos reais, como o assassinato do Papa João Paulo I, golpes de estado e também teorias da conspiração. Um dos redatores acredita fortemente nessas teorias, como a de que o líder fascista Benito Mussolini não teria sido morto no final da segunda guerra mundial em Milão, e sim um sósia dele. O verdadeiro teria fugido para a Argentina. Além dessa, existem outras teorias da conspiração, cansando um pouco a leitura.

Eco desenvolve a trama pelo ponto de vista de Colonna, um homem fracassado, que se submete as propostas do jornal. O romance se torna agradável justamente nesse ponto, quando se atém ao objetivo central. A equipe tem a missão de produzir jornais de edições “número zero”, com informações mentirosas sobre pessoas influentes, sobretudo, políticos. Na tentativa de suborno, tanto em dinheiro quanto em benefícios variados. Mas essas “acusações” não têm nenhuma base verdadeira, de apuração jornalística. São mentiras que servem apenas para denegrir a imagem pessoal dos subornados.  Ou seja, como Eco afirmou sobre esse romance, o jornal nesse caso serve puramente como uma máquina difamatória.  A forma como essas acusações são feitas beiram o fantástico, de tão absurdas.  Mesmo sem provas, as acusações intimidam, porque são fabricadas profissionalmente, por gente que sabe o ofício de caluniar. Pessoas que utilizam os recursos exatos para persuadir e amedrontar seja lá quem for.

Mas observando bem, não é algo tão absurda assim. Principalmente nessa nova era das redes sociais, da internet a todo vapor, com notícias alcançando pessoas no mundo inteiro na velocidade da luz. Como a imprensa mundial alardeou, Número Zero é um manual do mau jornalismo, sem dúvida. Mas não apenas isso. É literatura da melhor qualidade, sem o pé no freio, sem amarras.  O romance transmite o evidente, as coisas que realmente acontecem todos os dias. Com jornais servindo apenas para fins pessoais, de pequenos grupos, não interessando o objetivo primordial da imprensa que é informar com qualidade e seriedade. Número Zero é um manual de jornalismo ao contrário.

Umberto Eco criou uma ficção para mostrar o mundo real, clareando situações e momentos históricos, mas também com o olhar sempre certeiro do tempo atual. Eco deixou um livro para pensarmos o jornalismo contemporâneo, com todos os seus problemas, entre eles, a artificialidade, a falta de preparo dos “profissionais” que ocupam boa parte das vagas, e o favorecimento de pequenos grupos do poder. Basta observar, por exemplo, o Brasil de hoje. Depois da leitura de Número Zero isso fica bastante claro. Umberto Eco, perspicaz como sempre foi, entendeu que os grandes grupos de mídia não existem apenas para informar, com apurações rigorosas e criteriosas, como no filme Spotlight, baseado numa história real, com jornalistas revelando casos de pedofilia na igreja católica. Eco entendeu, acima de tudo, a imprensa como uma grande máquina, que serve tanto para informar quanto para desinformar e embaralhar a mentalidade das pessoas. Número Zero precisa entrar na grade curricular dos cursos de jornalismo, com certeza, por seu caráter atemporal e da importância do tema. Principalmente agora, com o futuro da profissão tão incerto.

Por isso, Umberto Eco vai fazer tanta falta. Porque era um inquieto com as condições do mundo, do seu próprio mundo. E sempre tinha uma opinião inteligente sobre diversos assuntos. Eco foi muito mais do que um simples escritor, essa denominação tão prostituída hoje em dia. Mas um grande pensador. Um homem que transitou por vários caminhos, em altíssimo nível. Um gênio, portanto, como poucos que merecem essa classificação.

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