Foto: David Rozenblyum

Por Ney Anderson

Após o suicídio do melhor amigo, uma mulher solteira de meia idade começa a narrar o que se passou depois de sua morte. Essa foi a maneira que ela, escritora e professora de escrita criativa, encontrou para lidar com o luto. Ela não esperava, porém, que o amigo falecido lhe deixaria como herança um dog alemão de nome Apolo, já idoso e também traumatizado com a ausência do dono.

Há livros que impressionam pela forma, outros, puramente pela história. Estética versus emoção. O que sensibiliza no livro O amigo (editora Instante), da norte-americana Sigrid Nunez, é justamente a união das duas coisas, mas que coloca o leitor em primeiro plano. Não existe um muro que separe o que está sendo narrado de quem está lendo. A sedução do leitor é algo marcante nesta obra porque o romance joga junto com ele.

De forma aparentemente simples, a narradora vai conduzindo o relato ao amigo morto, passando por situações gravadas em sua memória e também pelo fato novo da convivência com o dog alemão, que pertencera ao falecido. É um texto emocionante, embora não seja trabalhado para fazer o leitor chorar. A autora dá um passo além, nesse quesito. A grande questão do romance é a ausência. Mostrada por diversos tentáculos, centralizando no suicídio do amigo, e a tentativa de tentar encontrar explicação plausível para tal ato grotesco. A relação da narradora com as ex-esposas dele e o ambiente literário compõem uma atmosfera, ao mesmo tempo, sensível e dinâmica.  

Quão sofisticado pode ser um romance? Essa é uma pergunta que paira durante a leitura, que tem como resposta não apenas um caminho, mas uma variedade de tentativas subjetivas de se explicar algo tão inexplicável como a questão eterna Quem somos? De onde viemos e para onde vamos? Mesmo essa dúvida existencial de resposta impossível sendo frequentemente debatida por estudiosos da religião, da ciência, da numerologia e também por pessoas comuns, que apenas querem entender esse mistério eterno. Etéreo. O mesmo se dá ao tentar entender a profundidade literária a partir da conversa íntima entre a narradora e o escritor morto.

Na literatura, assim como nos mistérios da vida, é meramente imponderável a ideia de se entender as engrenagens que fazem de um texto de ficção algo que alcance um grau maior de excelência.  A narrativa de Sigrid Nunez é envolvente e faz o leitor pensar (e olhar) por diversos ângulos. Não é um enredo que fica parado em apenas um ponto. Esse é um dos trunfos que faz de O amigo o excelente trabalho de ficção que é, e não por acaso foi premiado com o National Book Award em 2018.

Conhecemos o escritor morto, por exemplo, na intimidade, de forma indireta, pelo o olhar que a outra tem dele. O livro passeia por situações íntimas vivenciadas pelos dois. É um livro repleto de pensamentos e confissões, entre a eterna saudade de uma amizade que valeu cada minuto e a tentativa de manter a memória viva.

Mas O amigo não se centra apenas no luto e nas situações que ocorreram entre os dois. Mostra também a experiência dela ministrando oficinas literárias e as lembranças sobre os diversos livros que leu. Ela chega a propor alguns exercícios de ficção durante a obra.

“Escreva sobre um objeto. Escreva sobre algo que é ou foi importante para você. O objeto pode ser qualquer coisa. Descreva o objeto e, em seguida, explique porque ele é importante para você”, é apenas um deles.

E casos hilários envolvendo a oficina literária: “O aluno A está frustrado porque o curso exige muita leitura: Não quero ler o que outras pessoas escrevem, quero que as pessoas leiam o que escrevo. O aluno B está preocupado com o fato de grande parte da bibliografia obrigatória incluir livros que não foram sucesso de vendas ou que estão esgotados. Não deveríamos estudar escritores bem-sucedidos?”. E não deixa de fazer críticas ácidas com escritores célebres. “O que você está esperando? Você também pode escrever um best-seller. James Patterson. Sempre aparecendo, insistindo, persuadindo, prometendo o mundo. Como o diabo”.  

Além disso, claro, acompanhamos o relato da rotina diária com Apolo, que ocupa boa parte dos capítulos. Mesmo relutando no início, inclusive com risco de ser expulsa do prédio onde mora, por ser proibido criar cachorros, ela, inevitavelmente, acaba criando afeto pelo cão. Começa a nutrir por ele um genuíno carinho. Chega a ser engraçada as peripécias em manter um animal gigante dentro de um espaço minúsculo. Sem contar a dificuldade que as pessoas têm de aceitar cachorros em locais públicos, entre outros acontecimentos que envolvem uma mulher solteira, já na meia idade, na companhia de um dog. “O que somos, Apolo e eu, senão duas solidões que se protegem, se complementam, se limitam e se inclinam uma para a outra”.

O amigo, portanto, não deixa de ser um grande exercício literário para a escritora-narradora. Ao mesmo tempo que ela tenta compreender a vida, exercita a ficção.  

“É curioso como o ato de escrever nos induz à confissão. Não que ele também não nos induza a mentir sem parar”.

A aproximação da narradora com o amigo morto, e até consigo mesma, se dá justamente através das palavras escritas. A morte, claro, faz parte de todo o enredo. Mas de uma maneira simples. Natural como tem de ser. É um livro sobre a vida. “Quando algo ruim acontece com um escritor, não importa o quão terrível, há sempre o lado positivo”, diz.

O amigo é um livro belo, tocante, que nos mostra a beleza da relação de amizade. Embora o título e a capa tentem reforçar (de forma errada) a ligação entre um ser humano e um cão, o texto da autora é uma reflexão sobre a amizade com alguém que já partiu e deixou uma profunda marca. A autora se utiliza de uma carga dramática que eleva o sentimento de quem está lendo. Mas não de uma forma complacente.  É um livro para ser lido, sentido e nunca mais esquecido.

“Claro que eu tinha a preocupação de que escrever sobre isso pudesse ser um erro. Você escreve uma coisa porque está esperando resolvê-la. Você escreve sobre experiência em parte para entender o que elas significam, em parte para não perdê-las no tempo. Perdê-las no esquecimento. Mas há sempre o perigo de o oposto acontecer. Perder a memória da própria experiência para a memória do ato de escrever sobre ela. Portanto, isto pode acontecer: ao escrever sobre alguém que você perdeu – ou, então, ao falar muito dele –, você pode estar enterrando-o para sempre”.

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