Por Ney Anderson

“Desconfio que a imprevisibilidade da reação das criaturas é que boicota os projetos do Criador”, diz um dos personagens do escritor Rômulo César Melo, no livro de contos O colecionador de baleias (Cepe Editora). É a partir de fatos inesperados que se desenvolvem as dezessete narrativas da obra.

No conto que abre o livro, Ao lado do guarda-chuva, uma mulher relembra a própria história quando um circo chega à cidade, porque ela fazia parte da trupe daquele mesmo circo, quando teve a vida destroçada por dois acontecimentos. O assassinato do marido equilibrista, cometido pelo ex-marido mágico, da mesma trupe, que a espancava, e o sequestro do seu bebê, que ela só fica sabendo do paradeiro com o aparecimento do antigo companheiro.

Na história seguinte, Só pode ser o nosso filho, é a relação profissional do michê com uma professora que paga para ter relações sexuais com ele. Ela acaba se apaixonando, mas o homem só aceita o relacionamento em troca de dinheiro. Já que, como a própria diz, é feia e já passou da idade que desperte o interesse nos homens. Ela descobre que está grávida do rapaz, mas ele não aceita. Com a rejeição, a professora acaba cometendo um crime. O sentimento de inferioridade resulta num texto todo escrito em letras minúsculas para transmitir essa sensação.

A valsa mostra a lembrança de um rapaz nos momentos de infância com o melhor amigo, que morre de forma trágica. Penúltima arte apresenta a história do homem que não consegue superar a separação com a esposa. Por isso ele decide criar um mundo artificial, transformando a imagem da mulher numa escultura de gesso. No conto seguinte, Claro escuro, enquanto aguarda na fila para comprar medicamentos para o filho especial, a mãe relembra a expectativa pela chegada do bebê, que se torna o maior desafio da vida dela. Porque a criança não é a idealizada. Abandonada pelo marido, ela segue na missão de cuidar do menino sozinha. Nesse conto o texto flui através de dois tempos. O presente e o passado, com diversas digressões entre esses momentos. Quando se chega ao final, os dilemas da personagem são também a do leitor que acompanha a narrativa.

O furo, a música Construção, de Chico Buarque, dita o ritmo do caos no engarrafamento recifense. Em meio à loucura do trânsito, onde as brigas são comuns, os nervos à flor da pele resultam em tragédia. O churrasco apresenta a história de um ciúme doentio. O livro tem até espaço para história de guerra no Invisível som de gaita. No conto Bárbara, baseado em fatos reais, sobre um boato que culmina no linchamento público de uma falsa sequestradora de crianças. É o texto mais impactante, que ficcionaliza a avalanche perigosa de um boato. “Dentro do livro grosso de Bárbara de Jesus, acusada e punida pela própria comunidade onde morava, por sua semelhança com a fotografia de uma criminosa, estavam as fotos dos seus dos filhos, que marcavam a página em que se lia: se algum de vocês estiver sem pecado, seja o primeiro a atirar a pedra”. Em Lacrimosa a música clássica faz parte da construção do enredo para conduzir a relação sadomasoquista de um homem perturbado.

Em Orígenes acompanhamos rapidamente a origem do mundo e as fracassadas tentativas do criador em transformar as pessoas a sua imagem e semelhança. A trama de Viúva é dentro do velório que acontece de maneira curiosa, num desfecho tragicômico. Prótese de letras é o perturbador conto, onde um dentista arranca os dentes das mulheres que ele se relaciona, seguindo uma ordem macabra das letras iniciais de cada uma delas para refazer a arcada dentária do crânio da mãe dele, morta durante um acidente de trânsito, que acaba ficando com o rosto desfigurado e sem nenhum dente. “Seria ele o dentista a trazer aquele sorriso de volta, as flores, a mãe de volta, faltava um único dente. Em duas semanas conheceu uma índia, atendente de um boteco. Zaira”.

Aos três é a narrativa sobre um casal fora dos padrões tidos, até então, como tradicionais, onde a figura masculina é um homem trans. Eles têm o sonho de ter um filho concretizado, mesmo entre as sutis resistências da família. Aqui o texto não força a barra para empurrar determinados conceitos, mas apenas mostra como a vida é. Simples assim. A natureza humana que não ampara no pré-estabelecido pela mentalidade conservadora, como diz a narradora para o filho. “Seu pai já operado, exemplo de que a natureza da alma molda o corpo”. Bonequeira é a idealização do amor de uma mulher solitária por um boneco, de nome Claudionor das Olindas, para quem ela deixa os poucos bens que tem. Em Abraços vemos um homem também solitário, que decide não seguir o vazio da vida.

O colecionador de baleias que dá título ao livro e encerra a obra, fala de um jovem londrino que utiliza óleo de baleias para acender lamparinas, profissão que aprendeu com o pai, mas que foi extinto algum tempo depois, o obrigando a seguir por outros subempregos. Mas o que ele persegue mesmo é encontrar a última figura para completar o álbum com imagens de baleias de variados tipos que ele coleciona desde criança. De forma rápida e concisa, acompanhamos as dificuldades do personagem e os conflitos que ele carrega. É então que surge a oportunidade dele, já um homem cheio de marcas da vida, trabalhar em um navio que caça os mamíferos. O deslumbre do homem quando vê pela primeira vez o animal é o encerramento perfeito para um livro cheio de sutilezas, com personagens e histórias marcantes, que povoam (e habitam) o mundo imaginário do autor.

O Recife faz parte de alguns enredos. Os personagens são (estão) na capital pernambucana, mas poderiam estar em qualquer cenário. As histórias não se limitam a cor local, mas utilizam desse ambiente urbano para as figuras do cotidiano. É como um grande filme de cortes secos mostrando vidas diversas, onde o principal eixo narrativo que une todas as histórias é exatamente a linha invisível da conexão urbana dos personagens, que se cruzam diariamente. Juntos, os contos formam um grande e variado tecido humano, que povoa as metrópoles, cada vez mais abarrotadas e apressadas.

Os personagens de Rômulo, tal qual na vida real, trabalham, fazem sexo, morrem em brigas de trânsito, matam, estudam, amam e odeiam, andam de ônibus e metrô, frequentam bares e seguem a vida sem roteiros pré-estabelecidos. Por isso muitas das narrativas têm o aspecto fluido que apenas a vírgula, e não o ponto final, dita o objetivo da continuidade, dos movimentos que seguem o fluxo.

Percebe-se o texto extremamente técnico, mas que não engessa as narrativas, tornando-as herméticas. Rômulo César alcança justamente o efeito contrário, de contar boas histórias sem o ranço das amarras teóricas porque os personagens estão vivos, não são meras figuras coadjuvantes. São textos criativos, que exploram diversas visões de mundo. A condução das narrativas é feita com maestria, de quem aprendeu bem o ofício. É um livro de várias vozes independentes, um grande painel urbano, com desfechos cirúrgicos, que traduzem o imponderável.

São contos bem trabalhados, que percorrem um caminho narrativo leve, apresentando boas histórias. Alguns dos textos têm a estrutura clássica, com começo, meio e fim. Outros não. No final o leitor pode se perguntar o sentido do belo e enigmático título, até se dar conta que na impossibilidade de colecionar baleias na vida real, a imaginação, amparada em uma extrema criatividade, é capaz de qualquer coisa, inclusive colecionar os sonhos. Rômulo César Melo conseguiu criar oceanos íntimos e imaginários, de mistérios infinitos, com personagens que estão muito além da superfície.

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