Foto: Renato Parada/Divulgação

Por Ney Anderson

No Tribunal da quinta-feira (Cia das Letras), novo romance de Michel Laub, José Victor é um conceituado publicitário de 43 anos, grande amigo de Walter, também da mesma área de formação. Ambos se conheceram ainda na faculdade, nos anos 1980, e continuaram com a amizade pelas décadas seguintes até os dias atuais, onde passaram a se encontrar regularmente e trocar mensagens por e-mail, com atualizações do dia a dia de cada um deles.

Eles falam, sobretudo, de sexo e traição, sem pudor nenhum. Muitas dessas mensagens estão recheadas de piadas ofensivas, assuntos relacionados a ex-mulheres e diversos outros temas politicamente incorretos. Como, por exemplo, quando Walter, homossexual e portador da aids, diz que vai sair pelas ruas à procura de parceiros para infectá-los. Mas tudo isso como um humor negro, irônico, sem essa real pretensão. Aquele tipo de conversa entre amigos.

O protagonista está no fim do casamento com Teca, mas se envolve com a redatora-júnior Danielle, vinte anos mais nova, na agência na qual é um dos chefes antes do término do relacionamento com a esposa. Isso, lógico, também faz parte do assunto entre os amigos. Meses depois de fim do casamento, Teca encontra um caderno com senhas de e-mails do ex-marido e descobre que foi traída através dessas trocas de mensagens. Ela decide enviar os e-mails para algumas amigas e logo depois boa parte dessa correspondência vai parar nas redes sociais.

A vida de José Victor equilibrada e tranquila se torna um inferno do dia para a noite e ele passa a ser atacado na internet pelos juízes full time das plataformas digitais. Esse “tribunal” não deixa espaço para ele se defender. Misógino, homofóbico e machista são apenas alguns adjetivos impostos ao narrador-protagonista. E o pior, também atinge a redatora, que tem a vida exposta publicamente.

“A imagem que os interessados têm de mim no momento é a que Teca escolheu fazer”.

O Tribunal da quinta-feira utiliza a epidemia do HIV, sem tanto destaque hoje, como pano de fundo para mostrar o poder nefasto da invasão de privacidade. A partir do momento que conversas particulares são invadidas e divulgadas de forma criminosa para denegrir alguém e acabar, consequentemente, com a moral e a dignidade da pessoa. Sendo agravado pela velocidade das novas tecnologias, com alcance quase infinito em poucas horas.

O tema do romance é bastante atual. Nada mais marcante na geração de hoje que a força e a onipresença das redes sociais, presente no cotidiano de milhões de pessoas ao redor do mundo. Com a popularização da internet e das mídias digitais surgiu o fenômeno dos especialistas em generalidades, onde todos têm aquela velha opinião formada sobre tudo (salve, Raul). É justamente nesse julgamento, ou linchamento público, que o protagonista é colocado.

O livro de Michel Laub faz uma crítica sincera sobre a “condenação” que alguém pode sofrer de uma hora para outra em páginas na internet, onde os “juízes” não querem ao menos ouvir o que o outro tem a dizer. Sem a mínima preocupação com os possíveis danos. Não existe piedade para os “réus”, apenas intolerância.

“A cada vez que penso na reação às mensagens vazadas, é como se a internet inteira escrevesse uma tábua de mandamentos…”. 

Entre a leitura dos e-mails e a divulgação se passam apenas alguns dias, tempo suficiente para transformar tudo numa verdadeira avalanche para os envolvidos. Existe uma maneira quase jornalística no trato do romance. Principalmente na primeira parte da obra, quando é falado sobre o surgimento da aids, que transformou a liberdade sexual e o desbunde menos atraente. A forma do romance, em capítulos curtos, é interessante.

Os diálogos internos são formas sofisticadas de fazer a leitura fluir, sem pausa e interrupções. Laub faz toda a ambientação do enredo para justificar o que está por vir. O absurdo de uma pessoa que um dia fez parte da vida dele, é a mesma que se encarrega de tentar destruí-la por completo, atingindo, sobretudo, a sua honra. O narrador nunca entrega totalmente o que vai acontecer. É sutil e, por vezes, audacioso.

“Todo fascista julga estar fazendo o bem. Todo linchador age em nome de princípios nobres”.

O Tribunal de quinta-feira não é uma obra fechada. Vários questionamentos e reflexões são apresentados, deixando situações em aberto, jogando para o leitor o próprio julgamento sobre os fatos narrados. O debate que Michel Laub propõe vai muito além das 183 páginas. Faz pensar sobre esse assunto tão novo. Ainda que não seja da mesma altura dos outros romances do autor, o livro não é para leitores de primeira viagem.É necessária certa maturidade para entrar na prosa estilística de Laub e entender toda a ironia e o sarcasmo presente na trama. Maturidade e paciência, porque tudo acontece em outro ritmo, mesmo com a opção dos capítulos curtos.

A questão da privacidade violada em tempos de mídias sociais é um assunto relativamente novo, que faz deste romance uma obra totalmente aberta. Lança luz nos linchamentos virtuais e na falta de tolerância, cada vez mais selvagens e irresponsáveis, que acontecem todos os dias, no mundo inteiro, no ambiente que pode parecer inofensivo, mas que mostra exatamente o contrário. O lugar onde todos parecem estar sendo vigiados.

É impossível não se envolver com temas tão contemporâneos, trabalhadas ficcionalmente de maneira tão verdadeira e refinada. As últimas obras do escritor porto-alegrense exibem personagens (sempre bem construídos) sobreviventes, todos engendrados no lirismo e na prosa particular de Michel Laub. É literatura de alta qualidade.

2 thoughts on “O feroz e impiedoso tribunal das redes sociais”
  1. Muito bom!
    Deu vontade de ler o livro, mais do que isso, refletir sobre os ‘supostos valores julgados nas redes sociais’. Aparência x Realidade, melhor viver a vida do que expor demais, pra não dar direito de julgamento ao mundo.

  2. A resenha trouxe pontos bem explicados que mostram como é a narrativa sem perder aquela sensação boa causada pela descoberta da história. Muito bom!

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