Foto: Rafaela Cavalcante

Por Ney Anderson

Às vésperas de mais uma Copa do Mundo, em que novamente o Brasil tentará o tão sonhado hexacampeonato, o romance A cobrança (Record), do pernambucano Mário Rodrigues, transforma esse fato em ficção, colocando o esporte e a política no centro do enredo desse magnifico livro.

Depois da disputa sem gols no tempo normal entre Brasil e Alemanha na final da Copa do Mundo de 2018, disputada na Rússia, o campeão será conhecido nos pênaltis, que, naquele momento, mostra os alemães à frente do placar, por já terem convertido as cinco cobranças. Saúva, volante e capitão da seleção brasileira, é o responsável pelo último pênalti da rodada, o quinto do Brasil. Se ele fizer, empata o jogo, e coloca a canarinha no páreo pelo título. Se perder, no entanto, leva o país novamente para o buraco negro futebolístico que foi alçado quatro anos antes, pelo mesmo time, em uma goleada vexaminosa em casa. Ou seja: o céu e o inferno na ponta da sua chuteira.

A estrutura do romance funciona em três tempos narrativos distintos que vão se cruzando: a ida do atleta até a marca do pênalti, com milhões de brasileiros depositando nele todas as esperanças para manter o time vivo na disputa pela taça; os episódios políticos da Era Collor; e a história do personagem principal, a partir do seu nascimento em 1988, mesmo ano da última Constituição. São linguagens distintas para cada momento. Enquanto o jogador se encaminha para o centro da grande área, a vida dele vai sendo repassada em fluxo de consciência e se entrelaçando com as outras histórias da trama.

No ano seguinte ao nascimento do jogador, em 1989, Fernando Collor era eleito democraticamente pelo povo após o regime militar. Nos primeiros dias de governo, o presidente resolve extinguir órgãos e empresas públicas, além de confiscar os depósitos e as cadernetas de poupança dos brasileiros, através de um malfadado plano econômico. Algo que impacta diretamente a vida do pai de Saúva, que além de ter as suas economias confiscadas pelo governo e de ficar também sem emprego, acaba de ser abandonado pela mulher com o filho pequeno. Cada capítulo vai sendo precedido por fragmentos do Artigo 5º da Constituição como um mantra irônico: “Todos são iguais perante a lei”.

Muita gente se pergunta o que deve se passar na cabeça de um atleta no momento de tamanha responsabilidade. O autor criou exatamente essa experiência dentro de uma narrativa de ficção que extrapola os limites das linhas do campo e do livro. A forma como o autor consegue segurar a narrativa de mais de duzentas páginas, indo e voltando no tempo, em linguagens singulares, é um mérito, porque o que poderia se tornar enfadonho e confuso, faz o efeito inverso. Ajuda a enriquecer a obra, justamente porque todas as histórias se sobrepõem dando a dimensão necessária para toda a complexidade e mistério do personagem central.

O romance faz uma rápida analogia com o futebol (o que viria se tornar futebol) praticado em outras épocas no mundo (em diversas civilizações), até as competições disputadas de forma organizada, com regras modernas, chegando até os dias de hoje atualmente, sem a mesma graça de antes, como afirma o narrador do livro. Começando pelos apelidos dos jogadores, que foram modificados para nomes compostos, até a doação pela vitória a todo custo, por conta do amor à camisa. Hoje, como pensa Saúva durante a caminha até a meta, tudo é mecânico e burocrático.

Existem muitas referências aos ídolos do gramado, mas não deixa de ser uma crítica ácida ao esporte, intimamente ligado à política, com interesses escusos dos dirigentes e organizações, e até mesmo dos companheiros de time, alguns deles de reputação duvidosa. Nesses momentos de euforia e catarse coletiva, o futebol se apresenta como antidoto momentâneo das mazelas do país. É contra isso também que o craque do time luta naquele espaço, principalmente aos “que fizeram do futebol brasileiro um esporte praticado por expatriados e blasés, ignorantes dos problemas do país, acríticos, apolíticos, abestalhados com o poder pecuniário”.

“Ali, você pode construir o seu mundo, o seu destino, é tudo sua responsabilidade (você sempre disse “segue o jogo”) – se toninho cerezo não tivesse errado o passe na intermediária  defensiva, a seleção de 1982 seria campeã; se mauro silva tivesse colocado um pouco mais de força, em 1994, pagliuca teria engolido aquele frango; se david beckham não tivesse amarelado na dividida com roberto carlos, não haveria o gol de rivaldo contra a inglaterra, não haveria o pentacampeonato; ali, no gramado, você pode fazer a massa feliz ou não; milhões de pessoas maleáveis à sua ação, aos seus caprichos, ao seu poder: e logo, logo, você poderá ser um líder, não o líder da equipe apenas – como já o é -, mas o líder da instituição inteira, talvez até do país, tão carente de comandantes, carismas, proficiências (…) você caminha resoluto em direção à meta, apenas à sua meta”.

Para Saúva, a noção de pátria não existe, porque mesmo ele tendo conquistado muitas alegrias nos gramados, atingindo o ápice da carreira, também perdeu muita coisa, sobretudo a inocência, por conta das agruras do pai já falecido, que sempre depositou nele a esperança por um futuro melhor. O jogador é um personagem rico em toda a sua complexidade. Ele questiona o seu papel dentro daquele campo e não quer ser o herói de nada, rechaçando o título de salvador de uma pátria desigual, corrupta, que joga os pobres para o segundo plano. “Não vou cobrar um pênalti, apenas. Cobrarei traições, mentiras, confiscos, demissões, violências, corrupções, fugas, humilhações, misérias. Meu chute será uma ejaculação”.

O momento derradeiro da penalidade é a representação da fuga, do exorcismo dos próprios demônios, mas também da vingança. Até o título do livro traz essa dubiedade. A cobrança de algo que lhe ficaram devendo. O pagamento simbólico por anos de injustiças e derrocadas pessoais está ali na sua frente, representado num único e poderoso ato: o chute ao gol. A sua glória particular. A grande chance se vingar contra a pátria que malogrou a sua história. É a representação do futebol como ato político: converter ou chutar para fora?

Que Mário Rodrigues não seja um profeta. Mas se a realidade resolver imitar a ficção, que seja com as suas mesmas qualidades de criação. O autor comprova nesse romance, parafraseando Arrigo Sacchi, técnico vice-campeão do mundo em 1994 pela Itália, que das coisas menos importantes da vida, o futebol, sem dúvida, é a mais importante delas.

  • Resenha publicada originalmente no caderno Pensar, do jornal Estado de Minas, no dia 18 de maio de 2018

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