Por Ney Anderson 

Se pensarmos bem, um goleiro é uma espécie de atacante às avessas. No romance novo do Xico Sá, “A falta”, essa ideia é ainda mais perceptível. O protagonista é o baiano Yuri Cantagalo, formado nas divisões de bases dos clubes cariocas, goleiro famoso por ter atuado e se destacado em times da Europa, que está encerrando a carreira jogando pelo Náutico. O enredo o coloca em uma partida da Copa do Brasil contra o Trem Desportivo Clube, do Macapá, e o acompanha durante os 90 minutos, literalmente.

Cada capítulo do livro é dividido minuto a minuto. O protagonista, então, vai repassando toda a sua existência durante esse tempo em campo. Ele vê a vida passar diante dos seus olhos. São passagens dos melhores e piores momentos da trajetória profissional e pessoal, mas sempre com um tom melancólico da despedida, das faltas todas que ele carrega até o derradeiro momento daquela primeira morte, como ele mesmo diz, que é o final da carreira. Pensamentos, delírios, dilemas, delírios, amores perdidos e situações tragicômicas estão presentes nessas linhas tão bem urdidas por Xico Sá.

O jogo disputado por Yuri é um dos piores, como afirmam o radialista e os seus auxiliares, ótimos personagem secundários, que existem para o leitor entender quão ruim é a disputa e também para contrabalancear com o drama dos pensamentos do goleiro. Aliás, esses personagens secundários são um show à parte, porque o autor encaixou muito bem o folclore das transmissões de rádio que salvam qualquer tipo de jogo, até mesmo os péssimos (como é o caso aqui). O engraçado, o pitoresco, o mambembe existem justamente nas figuras dos profissionais que cobrem as partidas, igual um rádio AM no pé do ouvido.

Mas a partida é apenas uma consequência, porque o enredo mesmo é sobre os dilemas desse personagem. É um livro que se equilibra entre o trágico-dramático e a melancolia da incerteza. O que fazer após a aposentadoria, pensa Yuri, pois não sabe nada além de ser goleiro. Dos melhores profissionais, por sinal?

Filho único de mãe solo (já falecida), é alguém que cresceu sem a figura paterna, vai tentando entender qual será o seu futuro após pendurar as chuteiras. E até mesmo a dúvida sobre a sua paternidade por um lendário guarda-meta, talvez uma fantasia da mãe, ronda a sua cabeça já tão cheia de problemas. O peso das sombras estão bem ali, embaixo daquele gol com Yuri. Como se não bastasse, ele foi ainda abandonado pela esposa um dia antes daquele último jogo. São boas reflexões também sobre o amor e as suas consequências por vezes improváveis.

O futebol, tão presente na sociedade, ainda é distante da literatura. Com este romance, no entanto, o autor ajuda a fechar um pouco a lacuna, ainda com muitos espaços a ocupar. De um jeito todo próprio, como sempre, emulando uma espécie de riso nervoso no leitor, Xico Sá cria essa jornada percorrida pelo goleiro através dos pensamentos que vagueiam e transbordam para aquele campo de jogo ao ponto de não sabermos em determinado momento se o que está acontecendo é real ou delírio. Sobretudo nos momentos onde o gandula-xamã lhe dá conselhos por trás da barra.

Todo o drama do goleiro é muito bem desenhado, dentro da atmosfera do jogo que não é de forma alguma festivo, pois o time está disputando uma partida de mata-mata. A analogia com a famosa jogada não poderia ser melhor. O personagem vai nos mostrando essas faltas todas que ele começa a sentir desde o primeiro minuto. Então, lance a lance, vamos entrando na mente de Yuri e dos fragmentos da vida que ele nos oferece.

São muitas questões mal resolvidas, como todo o histórico das dificuldades que os atletas enfrentam no início da carreira, incluindo o assédio sexual de dirigentes que ele teve que se sujeitar para poder ganhar espaço nos clubes. Todas essas reflexões, inclusive, acontecem em cima da linha do Equador que divide justamente aquele campo em Hemisfério Sul e o Norte (cada tempo é disputado em um lado). O bom humor peculiar do autor, claro, está presente.

O principal mérito do livro é ser envolvente. É realmente impossível largá-lo antes do apito final. Enquanto defende uma bola ou outra, como pequenos lampejos de surpresas, Xico nos oferece um personagem de uma história inesquecível.

Um verdadeiro golaço narrativo. Gol de placa para narrador nenhum botar defeito.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *