Por Ney Anderson

Um bom livro de contos é aquele capaz de conquistar o leitor em poucas palavras. Essa afirmação torna-se meramente subjetiva quando encontramos livros que não se sabe ao certo para onde estão indo. A complexidade de um conto pode ser muito maior, e mais significativa, do que um romance de centenas de páginas. Contistas clássicos como Anton Tchékov, Jorge Luís Borges, Guy de Maupassant e o nosso Machado de Assis, entre muitos outros, são até hoje estudados e lidos justamente por falarem bastante em textos curtos, ou curtíssimos, mas com muita profundidade. Os contos desses autores quase sempre são divididos em dois ambientes: o visível, aquele que está escrito no papel, muitas vezes disfarçados de simples normalidade, e o invisível, escondido nas entrelinhas, através dos jogos dúbios que só os grandes autores sabem fazer.

É exatamente esse jogo de duas faces que é feito Um silêncio avassalador (Ed. Moinhos), do porto-alegrense Lucas Barroso. Nos 17 contos do livro percebemos uma tentativa incômoda por conta dos temas retratados. Estupro, pornografia, prostituição, descoberta da sexualidade na infância são alguns assuntos abordados por Barroso, mas não se restringe somente a isso. Tem muito mais coisas nas 95 páginas do livro. Não se engane com a espessura da obra. O autor fez um exercício interessante de contenção de frases para falar somente o necessário. Talvez tenha seguido à risca o conselho de Carlos Drummond de Andrade, quando o poeta mineiro disse que “escrever é cortar palavras”.

É um livro melancólico e os personagens estão sempre tentando fazer parte da sociedade. São pessoas, de alguma forma, excluídas. A obra é pop, refinada, de linguagem fluída, que se lê rapidamente, e recheado de referências ao cinema. O silêncio do título está justamente nas entrelinhas de todos os contos. Não deve ter sido simples construir histórias sob essa premissa. É até irônico como uma obra feita de palavras possa ser construída a partir do silêncio que perturba, amaldiçoa e que causa estragos nos personagens.

O autor não faz concessão em momento algum da obra. No conto Quando fui puta, escrito sob o ponto de vista de uma mulher que relembra um caso extraconjugal, ele mostra uma personagem tresloucada, com todas as suas contradições e particularidades. A história é sem amarras, erótica e convincente. Nunca é fácil escrever através dos olhos de uma mulher, mas Barroso conseguiu dignamente. A ginasta mostra uma garota tentando alcançar a excelência no esporte como meta de vida desde criança, mas que fracassa no seu principal objetivo por conta de um relacionamento amoroso.

Em Tudo o que se passa na cabeça antes de uma noite de amor fala  da ansiedade e medo de um homem que recebeu um beijo na boca do colega no trabalho e se prepara para a primeira noite de amor com ele. Já em Vento Mistral, o melhor conto do livro, Lucas fez uma bela homenagem para o famoso diretor de cinema Clint Eastwood. Não uma simples homenagem. No enredo, o diretor tenta entender a sua própria relação com o mundo, a arte, e se o que fez até agora valeu mesmo a pena. Clint é construído com todos os dilemas e questionamentos trazidos pela idade. No conto, o diretor recebe uma proposta para interpretar a si mesmo numa autobiografia cinematográfica. “Quando retornou ao set de gravação e ouviu o primeiro “ação!”, Clint se deu conta que estava sendo uma bela representação de si mesmo. Como nunca tinha sido”. Ótimo texto.

Como um filme de Almodóvar, um homem vai para uma boate se divertir e conhece uma jovem prostituta fã de Almodóvar. Os dois, então, têm um interessante diálogo sobre cinema. Algo, no mínimo, peculiar, que só é possível acontecer nos filmes do diretor espanhol. A sétima arte, inclusive, paira sobre todos os textos de Um silêncio avassalador. Existe uma força imagética muito grande na ficção do porto-alegrense, muito próxima dos filmes. A obra é, acima de tudo, carregada de uma sensação de incompletude, de algo que ainda vai se realizar. Os contos lembram bastante as histórias de Raymond Carver, sempre terminando de uma forma incomum, como se continuassem depois do ponto “final”. Pode até não ser uma referência direta, mas os personagens dos dois escritores são profundos, sempre em situações-limite, com dilemas morais e éticos.

As histórias têm um toque de verossimilhança com a realidade factual, mas que ultrapassa o real indo por caminhos, por vezes, obscuros. Lucas criou personagens carregados de solidão, embora eles falem sem parar. Como diz o escritor André Timm no prefácio do livro, os contos são assustadoramente semelhantes ao nosso próprio mundo. Que pulsa ininterrupto do lado de fora das páginas. E onde a felicidade não passa de uma farsa, uma autoinvenção… Onde a vida, os vícios, seja o sexo, o álcool, a cocaína ou mesmo o que convencionamos chamar de amor, são apenas formas de silenciar a solidão de pessoas que carregam o vazio dentro de sim, buscando preencher essa lacuna de alguma forma.

Lucas Barroso, que tem na bagagem um romance (Virose) e um livro de poemas (O ano dos mortos), prova ser um autor com o caminho já traçado, que sabe aonde vai chegar. Logo estará no mainstream dos escritores mais festejados dessa geração.

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