Alberto Manguel. Crédito: Ana Obiols

Por Ney Anderson

O paraíso é uma espécie de biblioteca, falava Jorge Luis Borges, colocando esses espaços, o templo dos livros, como sinônimo de transcendência. Afinal de contas, a ideia de paraíso é justamente o contrário do lugar efêmero no qual a humanidade está “instalada”, ocupando por um certo período esse espaço-tempo que inevitavelmente acabará um dia para cada um de nós.

Então, imaginar a expansão das (melhores) experiências que adquirimos, de forma ininterrupta é, de fato, uma maravilhosa utopia, uma fantasia prazerosa, que Borges gostava de alimentar. A ideia do autor argentino, claro, carregava um tom de melancolia, porque, mesmo para um leitor compulsivo como ele, era (é) humanamente impossível ler tudo o que ele queria ler, sobretudo depois dele ter deixado de enxergar.

Em Encaixotando a minha biblioteca (Companhia das Letras), do também argentino Alberto Manguel, os livros também são traduzidos com essa dimensão metafísica e sentimental da relação com o o leitor. Só quem é mordido verdadeiramente pela mosca azul da literatura entende, e concorda, com as reflexões de Manguel neste livro tão descontraído, como deve ser descontraída a intimidade com as linhas e entrelinhas de um texto literário.

Manguel nos diz que não tem jeito. Quem ama os livros tem um carinho quase fraternal por esses objetos de papel, preenchido por incontáveis histórias. O apego quase sempre vem carregado por conta das maravilhosas sensações que determinadas obras provocaram nos leitores através dos seus diversos (muitos deles inesquecíveis) enredos. Mesmo os livros ainda não lidos causam o efeito de preenchimento. Afinal de contas, eles estão sempre lá, na estante, esperando o momento de serem lidos.

Nunca um livro está abandonado, ele aguarda pela hora certa em ser lido, folheado ou cheirado.  O tempo da literatura é outro. É isso (e muito mais) que Alberto Manguel nos mostra nesse delicioso Encaixotando minha biblioteca.

O autor fala sobre o desejo insaciável de não se afastar nunca da biblioteca, como a que ele precisou enfrentar em 2015, quando teve que se mudar da França para Nova York, tendo que dar destino aos 35 mil volumes da sua coleção. Para ele, a biblioteca é como o sonho imperfeito da ordem. Ele nos conduz de uma maneira muito íntima sobre o percurso da leitura e toda a sua variada forma que se apresenta para cada leitor. Também trata das palavras conhecidas através dos dicionários e do aspecto religioso da criação de várias sentenças.

Encaixotando minha biblioteca diz muito sobre a realidade imaginária dos livros, que nos afeta positivamente. E a experiência em ler o mesmo livro depois de vários anos. Talvez a mensagem central deste relato seja: o que a literatura (o livro) exerce na sociedade? E se, de fato, exerce alguma coisa. É essa mesma literatura, no entanto, o contato com os livros, que nos define de alguma maneira, como filosofa o autor

O texto entra ainda pelos caminhos (e labirintos) da escrita, refletindo sobre as possíveis formas criativas através dos tempos, citando dezenas de autores. Os percursos por onde a linguagem tenta seguir, de maneira até não exitosa em vários momentos. O sonho por algo que ainda não foi escrito. Os mesmos sonhos, aliás, que têm a ver com a leitura das narrativas que fazemos da vida. Manguel reflete, por exemplo, sobre a incapacidade de se criar  (reproduzir) o mundo “real”. O real inventado pela percepção de  cada escritor.

O título desta resenha pode soar até como um lugar comum, mas todo verdadeiro leitor, de alguma forma, é apaixonado por esse mundo fantasioso e imaterial criado por autores ao longo dos tempos.  Acompanhar os relatos deste livro é compreender a importância que esse objeto tem (teve) para a construção do mundo civilizado. Não existiria a ideia da civilização se não fosse amparada basicamente na arte da palavra, que foi evoluindo das mensagens gravadas com tintas em pedras, até chegar nos livros, no conhecimento que foi sendo repassado através dos séculos.

Alberto Manguel nos mostra, acima de tudo, que os livros são a ponte para a verdadeira transformação do mundo. Essa metamorfose que se dá, na verdade, dentro de nós mesmos, os leitores apaixonados, que recorremos sempre para as nossas bibliotecas como clínicas da alma. Os paraísos na terra.

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