
Por Ney Anderson
O poeta Miró viu a morte de perto recentemente. Sem forças nem para levantar do apartamento onde morava, foi obrigado a pedir ajuda e logo em seguida internado para tratar do alcoolismo. Teve uma nova chance de seguir em frente. Miró da Muribeca vivia sozinho num edifício abandonado, no bairro que virou seu sobrenome artístico. O livro aDeus (Mariposa Cartonera), que vai ser lançado nesta quinta-feira no Recife, pode ser compreendido como um recomeço na vida do poeta, que se recupera com a ajuda de amigos e admiradores. Até mesmo pelo fato da obra ser a primeira com poemas inéditos desde 2012, quando publicou DizCrição (Edições Interpoética). Seu último livro, Miró até agora (Fundarpe, 2013), com sua obra reunida, praticamente está esgotado.
A data de lançamento do livro é também o aniversário do poeta, comemorado no Bar Teatro Mamulengo, no Recife Antigo, a partir das 19h. Reunindo trinta e três poemas, o livro foi produzido de forma artesanal com capas de papelão pintadas à mão e conta com projeto gráfico da designer Patrícia Cruz Lima. É um livro com temática existencial acentuada, passando pela relação com o sagrado e a solidão, sem abandonar a característica de cronista e crítico da sociedade, marcas de Miró, o que dá uma pista das múltiplas interpretações que o título pode sugerir. A primeira edição terá 150 exemplares numerados e assinados, que custarão R$ 20.
acordei
Deus me deu passaporte para mais um dia
espero saber voar para lhe agradar”
Miró faz poesia da própria condição no mundo, onde ele é, sempre foi, um observador atento e irônico. É um artista que carrega a mágoa dos dias, das desilusões, e das escolhas erradas. Por isso que ele se vinga em cada poema que escreve, como destacou Marcelino Freire. O poeta é realmente uma pessoa à margem da sociedade em todos os sentidos. É preciso conhecer minimamente Miró para entender que sua busca não é por fama, glória ou dinheiro. É algo maior, que ultrapassa os limites da compreensão. Ele escreve para permanecer vivo, ainda que a vida seja conflituosa, difícil e injusta com os artistas do porte dele. Por isso ele se vinga contra tudo e todos em cada novo poema.
me encontro como os cachorros
que perdem seus donos
e no fim da tarde
não sabem para onde seguir
largados nas ruas
mendigando ossos nos bares
a sorte minha
é que minha poesia late
e tenho amigos
fiéis como os cachorros”
A obra é impregnada de angústia, das coisas ditas pelas não ditas, de silêncio, tristeza e dor. Mas o poeta é forte o suficiente para saber da importância dele no mundo, ainda mais agora que tudo está tão confuso. Miró está dando a volta por cima, se reinventando, e entendendo do papel que exerce na sociedade, dando voz aos que não tem voz. É como se, a partir dele próprio, extraísse as dores do fundo da alma das pessoas excluídas.
estava escrito sem mesmo existir
nenhum poema iria sair dessa
fez uma ponte de páginas
pra ir de encontro aos seus sonhos
virou um peão de si mesmo
pregou seus próprios pregos
e largou a cruz que carregava”
Não é à toa que os poemas em aDeus são como pequenos socos no estomâgo, que não derrubam, mas doem bastante. É impossível ler Miró e não sentir revolta, esse sentimento que faz parte do jogo incompreensivo da vida, que apenas pessoas como ele são capazes de decifrar.
amanheceu e ele
viu o céu outra vez
acreditou que ainda não era dia
de sua ida
que a morte não
viera lhe buscar
colocou as sandálias
desarrumou a mala
e dormiu um pouco”
SERVIÇO
Lançamento do livro aDeus, de Miró da Muribeca
Local: Bar Teatro Mamulengo, Rua da Guia, 207 (Praça do Arsenal), Recife Antigo
Dia/horário: 06 de agosto, 19h
Informações: (81) 9.9589-7777 (WhatsApp)
Olá, Ney. Estou gostando muito do seu site. O nome é perfeito. Acabei de reler seu conto Rotina – muito bom -, dos Contos de Oficina com Raimundo Carrero, onde fomos colegas. Por fvr informe onde posso comprar o livro do poeta Miró. Abç, Almerinda
Olá, Almerinda. Acredito que os livros de Miró esgotaram no lançamento. Mas você pode tentar através da página dele no Facebook. Abraço.
Ney,
Acompanho seu espaço há muito tempo, e essa justa homenagem a Miró é mais um texto de respeito. A publicação de Adeus se deve à Mariposa Cartonera, de Wellington de Melo, editora de livros artesanais que segue uma linha editorial que está explodindo pelo mundo todo. Adeus tem sido vendido com sucesso em toda parte.
Pretendo publicar seus comentários sobre o poeta da Muribeca em meu espaço o Facebook, o Staccato Literário.
Grande abraço.