Por Ney Anderson

Iniciar a leitura de um livro de contos é ter a certeza de encontrar histórias que podem ou não girar em torno de um único assunto, ou até mesmo aquelas tramas sob o mesmo tema, com pontos de vista distintos dos narradores e personagens. A obra de Iaranda Barbosa, Palavras de silêncio, é um desses exemplos onde o assunto geral dos textos não chega a ser único, mas em quase todas as histórias paira o clima de mistério, onde o sobrenatural e o fantástico, em maior ou menor grau, sugerem o tom narrativo.  

No conto “Myosotis”, uma mulher no leito de morte recebe a inesperada visita do filho morto. “Fibra óptica”, uma boa ficção científica, fala da comunicação de pessoas com outras em tempos futuros. “Sacerdotisa” é sobre a personagem feminina que viveu o preconceito na pele, viu a vida da mãe ser acabada por conta disso, dá a volta por cima e se torna juíza. Ela decide o veredito de um homem justamente sobre um caso de racismo e intolerância religiosa, fazendo da justiça a sua arma e a base de respeito e vingança, com as divindades do candomblé ao seu lado, consciente ou inconscientemente presentes naquele ato. “Tempos não verbais” é próximo da temática anterior, com mulheres herdeiras de carmas antepassados.

O toque misterioso de Iaranda continua com “Réquiem”. Crianças fantasmas brincam entre os jazigos do cemitério durante um velório. Ou nos pesadelos da personagem em “A passageira”. Na mesma linha está “Ocaso”, sobre um velho cão que tem contato com os mortos. Já em “Vida fácil” é a triste história de um feminicídio. “Stigmata” também a morte da mulher da o tom, por conta do estigma que ela carrega em ser quem é. A força da natureza feminina sucumbindo ao ódio. 

Em um outro texto,“O futuro a quem pertence”, a autora cria a história da menina Raquel, nunca compreendida por conta do seu jeito rebelde e libertário, que a família tenta purificá-la a qualquer custo. Enquanto que a irmã, Rosa, evangélica, tida como virtuosa aos olhos de todos, se torna uma outra, para desespero dos parentes.

A autora dá um novo olhar à noção de assombro, do sobrenatural, em pequenos textos ambientados em sua maioria no cotidiano. É uma característica muito pessoal e interessante que Iaranda Barbosa parece dominar tão bem: falar o necessário em pouquíssimas páginas. “Bonequinha de trapo” exemplifica isso. Aqui, a necrofilia descamba para uma situação surreal e fantasmagórica. Em “Femme-crampon”, um homem carrega, literalmente, algo como uma maldição nas costas.  

Iaranda trabalha também com alguns mitos, como no conto “Ubuntu”, sobre os povos originários, de gente escravizada, quando a personagem Dandara não aguenta mais a vida que lhe é imposta e põe um triste fim ao seu cruel destino. Um dos melhores contos é sobre o poeta que tem a alma transposta para um quadro de Tarsila do Amaral, artista admirada por ele.

O engraçado e o nonsense também fazem parte desta obra, como em “Incisivos”, a comicidade dos devaneios de uma estátua,  e “A musa”, onde a autora recria a lendária história da Perna Cabeluda, do escritor Raimundo Carrero. “O gigante” é um conto bastante espirituoso, com figuras emblemáticas do carnaval pernambucano se encontrando na folia como se fossem personagens reais. 

Palavras de silêncio, com 22 contos, que foi  publicado pela editora Mirada após um financiamento coletivo, comprova que a literatura contemporânea  exibe um leque genuíno de vozes e olhares. A obra de Iaranda, que começou a publicação ficção somente há dois anos, é feita, aliás, com um tanto dos silêncios apontado no título. Aqui, neste livro de contos, a literatura consegue transcender para fora das páginas, como deve ser sempre, fazendo o leitor refletir através da leitura, em histórias curtas e potentes. 

“Palavras de silêncio” é formado principalmente com a presença de personagens femininas, algo de fato bem característico no livro. Sobretudo porque as mulheres são apresentadas quase sempre em situações machistas, tentando se impor à sociedade ainda desleal com elas. 

Nessas pontadas de mistério tão bem realizadas na obra de Iaranda Barbosa, o cotidiano das narrativas é apresentado com olhares ainda mais reais sobre uma sociedade que quer parecer normal, mas que na verdade não deixa de ser totalmente estranha, fantástica e sobrenatural. 

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