Foto do autor: Renato Parada
Foto do autor: Renato Parada

Por Ney Anderson

O sonho de todo escritor brasileiro é viver de literatura. Isso é um fato. Como todo profissional, o escritor também quer ser reconhecido, admirado e pago pelo trabalho que executa. Sim. Escrever é um trabalho como qualquer outro, embora muita gente ache que não. Mas viver, ou sobreviver, exclusivamente de literatura, dos próprios livros escritos, é quase um sonho, beirando a utopia. Lógico que existem alguns casos (ou cases) de sucesso. Principalmente com os autores puramente best-sellers, que produzem única e exclusivamente obras populares visando o retorno financeiro acima de tudo. Quando se trabalha em algo mais artístico, no entanto, a coisa muda de figura. Pouca gente lê e os livros, consequentemente, vendem pouco. Isso acaba fazendo do escritor uma espécie de caixeiro viajante, com a necessidade de se virar com palestras, workshops, traduções, orelhas etc.

São coisas ligadas com a literatura, mas não são, em hipótese alguma, literatura. Apenas atividades paralelas. Os prêmios, contudo, têm a força, na maioria dos casos, de ludibriar essa percepção no próprio artista. O escritor se sente, de fato, privilegiado quando é reconhecido dessa forma. Dependendo do valor recebido ele acaba achando que vive de literatura em todas as suas extensões. Lógico que o prêmio é algo genérico, representando apenas um recorte na carreira do autor. Não é uma constante. Se for, pode desconfiar. A possibilidade de viver de literatura no Brasil é tão real quanto um romance de ficção.É sobre essa questão que Paulo Scott resolveu se debruçar no seu novo e instigante romance O ano em que vivi de literatura, publicado pela editora Foz.

O protagonista do livro é o jovem escritor Graciliano que ganha trezentos mil reais do maior prêmio do país em termos financeiros. O engraçado é que a vida de Graciliano no ano em que recebe esse prêmio não está ligada diretamente com a literatura, mas aos problemas da vida real, sem o romantismo que esse fato poderia ocasionar. Ir por essa premissa fantasiosa seria um grande equívoco e bastante simplório para investigar algo muito maior, que é a vida do escritor sem ilusões e clichês. Scott resolveu mostrar toda a problemática em torno do reconhecimento do artista e de como é sofrível a existência de quem resolve abdicar de tudo para produzir ficção. “O maior prêmio em dinheiro não era necessariamente o mais respeitado”, atesta o protagonista.

A vida de Graciliano é cheia de altos e baixos, com momentos (a maioria deles) de solidão e angústia e muitos excessos de álcool e sexo . Ele é um cidadão comum, tem as dificuldades de todos, mas acabou de ganhar trezentos mil reais, logo gastos com a compra de um apartamento. Muitas mulheres passam pelo seu caminho, e aos poucos ele vai perdendo o controle da própria vida por algum tempo. Não consegue, inclusive, escrever o novo romance aguardado pela editora. O ano que ele vive, teoricamente, de literatura, é o mesmo que, ironicamente não consegue produzir nada. Paralelamente a este fato, o período não deixa de ser bastante movimentado, e tumultuado, para Graciliano. O pai está bastante doente e a irmã saiu do convívio da família e resolveu desaparecer sem deixar nenhum contato.

O painel feito por Paulo Scott é claramente reconhecível, principalmente para os escritores. As críticas ao universo literário são bastante interessantes, sincera até demais. Graciliano, que de maneira alguma é alter-ego de Scott, pode ser qualquer autor brasileiro. Não existe glamour na profissão, ele deixa claro, muito menos reconhecimento para a maioria dos ficcionistas. Em determinado ponto do romance o personagem fala que ganhar o maior prêmio do país não quer dizer quase nada, pois no próximo ano outro vai ganhar, e assim sucessivamente. Uma verdadeira roda gigante. Altos e baixos, com o perdão do trocadilho. “Num momento como aquele, pro meu azar, o prêmio dum monte de grana que já nem existia mais na minha conta bancária e o perfil n’O Globo, definidor absoluto de status e prestígio na cabeça dum monte de gente do Rio de Janeiro e do Brasil, se materializava num grandíssimo monte de porra nenhuma e não serviam para porra alguma, mesmo”.

Com isso, as luzes que antes estavam voltadas para o campeão do momento, mudam o foco rapidamente para o outro agraciado com a honraria. É tudo fugaz, instantâneo e cruel no meio da literatura nacional. São problemáticas desse tempo, narradas sob um prisma de falta de esperança e de muita desconfiança no futuro para os escritores. Graciliano vai seguindo mesmo assim por acreditar na obra que produz. Isso é o que realmente importa no final das contas para ele. Graciliano é um personagem deslocado, tentando se inserir num outro contexto da vida literária que exerce, por isso resolve se mudar de Porto Alegre para o Rio de Janeiro, mais precisamente no Humaitá (onde Paulo Scott mora) na tentativa de mudança e rompimento do autor que ele era e do qual está tentando se tornar. Ou talvez na busca por uma liberdade artística ainda maior.

A metaficção, nesse caso, existe para tirar a literatura dessa aura glamourosa que não existe. A forma que Scott impôs ao texto é bastante interessante. Acompanhamos de perto tudo o que acontece. A intimidade do personagem, inclusive, é utilizada com maestria, com cenas de sexo (várias), por exemplo, convincentes. A prosa d’O ano em que vivi de literatura é limpa, ágil e de qualidade indiscutível, que flui sem dificuldades por conta do uso da primeira pessoa. Existe um refinamento sem concessões na prosa de Scott. O livro, acima de tudo, é muito bem escrito, comprovando a maturidade do autor, que já publicou oito livros, entre eles dois de poesia.O ano em que vivi de literatura consegue fazer um recorte muito sincero, até pelo fato de ter sido escrito por um brasileiro, que não está na lista dos mais vendidos, não ganha muito dinheiro com a venda dos livros, mas vive pela, e para, literatura. Só quem escolheu seguir por esse caminho pode entender.

Graciliano é bastante popular nas redes sociais, sempre escrevendo pensamentos e poemas. Mas aí está a grande sacada, pois tudo é muito artificial nos ambientes virtuais. Explorar esse aspecto no romance foi também uma boa ideia, principalmente agora que essas ferramentas têm uma importância muito grande para a divulgação de qualquer coisa. “Ela deu uma risadinha e disse que eu era uma pessoa diferente do que aparentava ser no Facebook, que no início daquele nosso encontro eu tinha passado a impressão de ser um sujeito bem austero, ainda mais austero e complexo do que aparentava ser no Facebook”. Lógico que, mais uma vez, Scott não apenas reproduziu o universo virtual que todos conhecem, ele usou da ironia para mostrar como tudo é tão frágil e mentiroso nesses ambientes.

A trama se passa entre novembro de 2010 até dezembro de 2011, divididos em quatro grandes partes intituladas de prólogo, o grande abril, o grande agosto e o grande dezembro, com diversos outros subcapítulos. Não fica claro como é esse livro que ganhou o prêmio. O romance, O ano em que vivi de literatura, não se debruça sobre as paisagens do Rio de Janeiro, muitos menos nos lugares comuns que o cenário poderia provocar. É apenas a cidade onde o escritor resolveu ficar. Embora é compreensível a escolha da “cidade maravilhosa” na tentativa de compor o pano de fundo para uma figura solitária no meio dos diversos atrativos e da “alegria” constante que o Rio oferece. É curioso quase não vermos leitores de Graciliano, apenas os próprios amigos escritores dele que comentam algumas coisas sobre o livro vencedor do prêmio, os editores e pessoas ligadas a literatura. A crítica é clara e direta. Será que boa parte dos ficcionistas do país escrevem apenas para serem lidos pelos pares? Fica a pergunta.

É difícil dizer se esse livro de Paulo Scott vai ganhar prêmios ou não, isso é irrelevante. Sem dúvida é um romance que agrada pela forma e conteúdo, acima de tudo pelos excelentes diálogos. O fato é que a obra é original e mostra a força narrativa do autor. É um livro que merece e deve ser lido agora. É difícil compreender o romance em toda a sua extensão, isso é louvável, pois Scott não entrega nada de bandeja, o leitor terá que decifrar a obra e tirar suas próprias conclusões. No entanto, é possível entender que o criador não sabe qual o real valor da obra que produz, e qual a necessidade dela no mundo. Ele apenas escreve, pinta, compõe, se expressa, enfim, sem essas preocupações na gênese da sua criação.

Se a obra vai se tornar um trabalho artístico admirado na mais complexa compreensão da palavra, da perpetuação e relevância, ninguém sabe. É impossível saber. Talvez resida aí a grande sacada do romance de Paulo Scott, onde o protagonista Graciliano é um personagem inquieto, justamente, ou principalmente, por não entender essencialmente para que serve a literatura. Como afirma brilhantemente uma namorada de Graciliano. “Você está sofrendo da consciência de não ter controle algum sobre a importância que os seus livros vão ter”. Ainda bem que Graciliano (ou seria Paulo) não tem essa consciência. Quem ganha é a literatura.

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