Por Ney Anderson

“Para o coração a vida é simples: ele bate enquanto puder. E então para. Cedo ou tarde, mais dia, menos dia, cessa aquele movimento repetitivo e involuntário, e o sangue começa a escorrer para o ponto mais inferior do corpo, onde se acumula numa pequena poça, visível do exterior como uma área escura e flácida numa pele cada vez mais pálida, tudo isso enquanto a temperatura cai, as juntas enrijecem e as entranhas se esvaem. No exato instante em que a vida abandona o corpo, ele passa para os domínios da morte. As lâmpadas, as malas, os tapetes, as maçanetas, as janelas. A terra, os campos, os rios, as montanhas, as nuvens, o céu. Nada disso nos é estranho. Estamos permanentemente rodeados por objetos e fenômenos do mundo dos mortos. Ainda assim, poucas coisas nos causam mais desconforto do que ver alguém preso a essa condição”. E foi assim, como nessas palavras na abertura do romance A morte do pai, do escritor norueguês Karl Ove Knausgård, que o meu pai morreu no dia 10 de abril deste ano, depois que o coração dele resolveu não bater mais, encerrando uma intensa vida que durou 53 anos. As linhas a seguir têm o objetivo de mostrar o lado bom da vida que ele teve, como alguém quem ainda está presente, ao menos no coração de quem sempre o amou e compartilhou todas as alegrias e tristezas.

O Angústia Criadora é um site de literatura, o que poderia soar estranho uma crônica tão íntima. Algo que nunca aconteceu aqui. Mas, como disse um amigo vários meses antes do fatídico dia, meu pai daria um ótimo personagem de ficção. Por conta das várias histórias relacionadas a música, numa época que ele tentou a vida como cantor. E até mesmo das coisas que ele contava sobre o trabalho no táxi que durou mais de três décadas. A arte, objeto central desta crônica, sempre fez parte da minha criação, tanto pelo viés profissional do meu pai querendo ser alguém reconhecido através da música, quanto pela grande admiração que ele nutria por um intérprete brasileiro. Então, nada mais justo, que a simbiose entre música e literatura seja o foco dessa homenagem para o meu pai, ou painho, que nos deixou a exatamente dois meses.

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Quando meu pai viu os Secos & Molhados pela primeira vez, sofreu um impacto, como todas as pessoas na longínqua década de 1970. Ele, como tantos outros, teve a bela oportunidade de acompanhar de perto o surgimento de um mito. As histórias do antológico show do grupo no ginásio Geraldão, no Recife, sempre eram relembradas por ele, dizendo da quantidade de gente, e que chegou por volta das três da tarde, quando, no entanto, a apresentação começaria às nove da noite; das pessoas desmaiando etc. No mesmo ginásio ele também se lembrava da turnê Matogrosso, que deu tanta gente, mas tanta gente, que os portões do lado de fora foram arrebentados. Nesse dia Ney Matogrosso teve, segundo meu pai, que sair no camburão da Polícia Militar. Outra apresentação bastante lembrada é o Destino de Aventureiro, que Ney fez em parceria com o Circo Tihany. Isso foi apenas o começo de uma história de amor e devoção. Meu pai, naturalmente, passou a ser conhecido com o singelo apelido de “Ney”, até a família o chamava assim, desde criança mesmo, só faltou registrar como nome verdadeiro, infelizmente não deu.

Uma tia me disse que morria de medo de entrar no quarto do meu pai, porque tinham vários pôsteres na parede do quarto dele, numa fase bastante “agressiva” do Matogrosso, com maquiagens pesadas e os famosos olhos arregalados. Sempre que a família estava reunida o assunto “Ney Matogrosso” aparecia. Ney sempre fez parte dos nossos dias. A mais bela homenagem do meu pai para o artista foi colocar o nome do ídolo no primeiro, e único, filho. Quando soube que seria um menino não pensou em outro nome. “Vai se chamar Ney”, disse, “Ney Anderson”. Deve ter enfrentando críticas e negações, sem dúvidas. Sair do usual e do comum é coisa que só os que têm coragem fazem.

É difícil entrar na mente das pessoas e entender o poder que Ney Matogrosso exerce sobre elas. É só por causa da boa música? Da voz marcante? Dos figurinos? da presença de palco? Não existe uma resposta definitiva para esse enigma. Ouso dizer que só acontece com ele. Nenhum outro artista do Brasil consegue fazer isso, ser outra pessoa fora de cena, completamente distinta, e um personagem em mutação no palco. Mas a sinceridade é a mesma em ambos os casos.

O último show que fui de Ney Matogrosso aconteceu no dia 25 de maio 2013, no começo da turnê Atentos aos Sinais. Foi uma noite maravilhosa. O show estava marcado para às 20h30, começou 15 minutos depois, por conta das pessoas que ainda estavam chegando. Lotação máxima. O primeiro sinal para começar a apresentação foi dado, depois mais um, e, por último, as luzes foram apagadas e a voz do locutor anunciou o nome da nova turnê e do cantor.

Canhões de luz projetaram um arco-íris no intérprete, que já estava acomodado numa cadeira de espelho e com uma roupa toda preta. Entrou com uma energia incrível e bastante sorridente. Sob fortes aplausos e os habituais gritos de “gostoso”, “delícia” e “maravilhoso”. Eu estava bem na frente do palco, apesar da escuridão total do teatro vi o brilho das pulseiras do Ney, e ele sentando. A abertura ficou por conta da impactante Rua de Passagem, de Lenine e Arnaldo Antunes

Muitas senhoras na plateia. Uma de 97 anos foi falar com ele depois do show. É até engraçado ver o Ney rebolando e elas sorrindo, sem vergonha ou acanhamento, coisa que deve ser diferente da rotina certinha delas. Como se naquele momento, dentro do teatro, elas fossem transportadas para décadas atrás, quando eram jovens e podiam tudo. E esqueciam, naquele momento, dos problemas do dia a dia. A mesma coisa acontecia com o meu pai. Ele podia estar triste com alguma coisa, mas era só começar a escutar o novo CD, assistir o DVD ou ir para um show, que a tristeza e as mazelas da vida passavam, ao menos naqueles ocasiões. Como se cada música de Ney servisse para um momento específico.

Ney Matogrosso é uma espécie de máquina do tempo que leva as pessoas para uma época de saudades. Mas não só para o passado, o momento atual se faz muito presente quando Ney está ali, olhando para seu público fiel, e dizendo que “o tempo é o meu lugar”, com a sensualidade que lhe é habitual. É uma força estranha naquele momento, que emociona por diversas razões: pela oportunidade de mais uma vez está presente na apresentação de um artista como ele; de (novamente o tempo) lembrar de coisas (no meu caso) da infância, quando acordava com meu pai cantando as músicas em frente ao aparelho de som, e dizendo sempre, como se já não soubéssemos, “esse é um artista do caralho”. E sobretudo, por entender essa relação de admiração que ele provoca, em ambos os casos, dentro ou fora de cena.

“A primeira vez que entrei no camarim para conhecer Ney tomei um susto. Ele era baixinho e calado. Totalmente diferente do que a gente via no palco. Nesse dia estava um pouco tumultuado, foi no Teatro Guararapes, em Olinda. Ele pensou que sua mãe era uma jornalista e pediu para nos deixarem entrar. Você estava junto, de cara emburrada. Lembro que falou se ele fosse te abraçar você daria um soco, porque ele era gay.  Mas não foi isso o que aconteceu. Simplesmente ele colocou a mão por cima de você e tiramos a foto, apesar da sua cara feia. Depois o próprio Ney convidou todos nós para uma boate onde ele iria com Raphael Rabello, o único músico do show, em Boa Viagem. Não fomos porque você era uma criança ainda. Infelizmente não tinha como”, disse meu pai. Considero essa foto como meu bem mais precioso relacionado ao Ney Matogrosso.

Nesse dia meu pai levou dezenas de LPs para serem autografados, que foram atendidas com um simples comentário engraçado do ídolo: “vou ficar a noite toda aqui autografando seus discos”, disse o Matogrosso. O show em questão foi o À flor da pele, e eu tinha por volta de seis anos de idade. Lá pela metade da apresentação, segundo relato da minha mãe, meu pai desceu, sentou nos degraus, e ficou até o final observando, contemplativo. Da mesma forma como eu gosto de fazer hoje quando vou para os shows de Ney. Curioso que meu pai fazia aniversário no mesmo mês do xará famoso. Ele no último dia de agosto e Ney, no primeiro. Com vinte anos de diferença na idade.

O último show que assistimos juntos foi o Vagabundo, com o Pedro Luis e a Parede, na Fábrica Tacaruna, no dia 15 de janeiro de 2005. Pude, nessa apresentação, ver meu pai chorando quando o cantor entoou a mais clássica de todas, Balada do Louco, de Rita Lee. Aliás, a música que ele mais gostava, e a que cantei baixinho, apenas para mim e ele, na hora que estava levando o seu caixão para ser sepultado. É a pura verdade quando Ney Matogrosso fala nas entrevistas que as crianças foram o salvo conduto para os Secos e Molhados continuarem cantando numa época de repressão rigorosa, imposta pela ditadura militar. Meu pai na época do surgimento da banda tinha apenas 11 anos.

Eu fui crescendo e ouvindo, quase que diariamente, músicas que já se tornaram emblemáticas como Sangue Latino, Balada do Louco, O Vira, Rosa de Hiroshima, Vereda Tropical, Calúnias (Telma eu não sou gay), Homem com H e tantas outras. Nessa primeira fase da vida, no entanto, não me atraí pelo artista, achava apenas engraçado os trejeitos e olhares. Convivi com um pôster de Ney vestido com um chapéu e capa azul escuro, do lançamento do disco Quem não vive tem medo da morte. Ficava na sala do apartamento. Também me habituei com os vários LPs espalhados pela mesa, que eram comprados com alegria por meu pai. Hoje estão bem guardados comigo. Minha admiração pelo artista aconteceu aos poucos e hoje sou fã, em todos os sentidos da palavra. Tanto que entrei no meu casamento ao som de Fala. “Eu não sei dizer. Nada por dizer, então eu escuto. Se você disser, tudo o que quiser, então eu escuto”. Na hora da valsa a escolhida foi a belíssima Jeito de Amar“Quando você me chega com os olhos de quem me quer. Eu abro meu corpo, desço do trono, eu quero beijar seus pés. São seus os meus segredos, que eu tenho guardado em mim. Mas eu me ofereço, pago seu preço, se você for mesmo assim”. Meu pai bem pertinho de nós, cantando alto e feliz.

Cada novo disco era um evento para o ano inteiro. Sinônimo de expressões comuns: “que música maravilhosa”; “olha esse arranjo”; “escuta essa abertura”. Conhecimentos técnicos que foram transpostos para o palco quando ele resolveu também ser cantor. Estamos falando do final da década de oitenta. No palco, inevitavelmente, músicas do ídolo foram cantadas com empenho pelo Ney desconhecido, que na verdade se chamava Manoel. Digo, desconhecido para o resto do Brasil, pois todos conheciam o taxista fã do Ney Matogrosso. Mas meu pai optou por ser cantor de forró. E como gostava desse ritmo genuinamente nordestino. Foi com esse estilo musical que ganhou o primeiro concurso de calouros, importante para dar início ao sonho que ele sempre quis colocar em prática.

Foram vários anos de shows e mais shows por todo o estado. Em vários deles eu estava presente, e lembro de como ele se sentia bem cantando, realmente feliz no palco. Certa vez um músico que o acompanhava disse que ele era um “fominha” de microfone, pois se deixassem, meu pai cantaria tranquilamente a noite inteira. Mas não só de alegria vive o artista, são muitos desafios para continuar uma carreira. Depois de algum tempo ele teve que deixar de lado a música, no sentido profissional. O que, de certa forma, foi uma frustração.

Mas toda essa vontade de ser artista começou quando aquele cantor de cara pintada e roupas extravagantes apareceu na televisão pela primeira vez, tirando todo mundo da zona de conforto. A admiração, que eu não tinha no começo, foi sendo conquistada aos poucos, me fazendo reconhecer que o Ney, de fato, se tratava de um Artista de verdade. Assim mesmo, com “A” maiúsculo. Mas o meu arrebatamento mesmo só aconteceu no show Olhos de Farol, de 1999.

Meu pai começou a carreira artística abrindo os shows de Reinaldo Belo, um popular radialista pernambucano que também era cantor. Foi ele que sugeriu o sobrenome artístico que meu pai usaria. “Quando eu comecei a fazer show com Belo ele trabalhava na rádio JC FM. Um certo dia, o discotecário da rádio disse que precisava colocar um sobrenome artístico em mim, para não ficar tão vazio, apenas com o primeiro nome. Aí Belo na hora sugeriu: Tropical. Assim, do nada. E ficou Ney Tropical”.  Ney, quando abria os shows de Reinaldo Belo cantava as músicas: Entre tapas e beijos, Balada do louco, Calúnias e Metamorfose ambulante. Depois de algum tempo montou a própria banda e seguiu uma curta, e intensa, carreira.

Meu pai não está mais presente entre nós, mas essas recordações, que para mim são difíceis demais de escrever, ficarão para a vida toda. No show de 2013 Ney Matogrosso cantou Vida Louca Vida, de Lobão, tão bem escolhida (como sempre), e Imagens da trajetória do artista foram exibidas em enormes telas de LED. Cenas congeladas, de momentos que, sem dúvida, foi acompanhada pelo meu pai com tanta devoção como eu hoje, que estou “perto”, vendo a segunda metade da carreira do Camaleão da MPB.

Terminada a apresentação em 2013 muitas pessoas (como sempre acontece) ficaram esperando por uma foto com o ídolo, um beijo ou um autógrafo. Da mesma forma que meu pai sempre fez, e que eu continuo fazendo. Na ocasião Ney Matogrosso saiu do camarim e atendeu os pedidos dos fãs. Assinou vários ingressos, capas de CDs e livros. Disse que voltaria. O empenho e a dedicação dele, só faz aumentar o seu legado e a admiração das pessoas.  Ele sabe muito bem, por isso não para de oferecer coisas novas para os fãs. E era essa junção de criatividade e humildade, no melhor sentido do palavra, que fez do meu pai um fã incondicional. Não existe no Brasil um artista com tantas qualidades como Ney Matogrosso. Meu pai sabia disso e me fez entender a importância de ser fã desse cara.

Essa admiração, como já disse anteriormente, não é fácil de ser explicada, mas entendo perfeitamente porque meu pai gostava tanto desse artista. O ídolo vira uma espécie de espelho para o fã, que ele vai seguindo sem se dar conta. No caso do meu pai um aspecto da personalidade dele lembrava muito Ney Matogrosso: a sinceridade. E outras coisas, como não ter tido medo de nada e de ter amado a arte, mesmo que inconscientemente. Talvez seja algo bem maior mesmo, com as várias possibilidades que a música nos apresenta, estabelecendo uma conexão mágica, quase um milagre, entre os vivos e os que já se foram.

No final das contas essa a maior lição que ficou do meu pai. De uma pessoa que amou. Amou tudo, inclusive a arte, se tornando também um artista. Que fechava os olhos para contemplar as músicas que tanto gostava, como se para sentir mais perto, ou dentro de si mesmo, as melodias, os acordes e o timbre da voz do artista que ele tanto admirou. Que ficava feliz ao ouvir o filho lendo os contos que escrevia. Passando um legado, ainda que inconsciente, de amor artístico. Que serviu (e serve, no meu caso) para combater os dias tristes, de melancolia e saudade. Pela vida que passou e que estava, pouco a pouco, indo embora, sem controle. Como na bela canção de Cazuza, “E se por acaso, doer demais. É porque valeu. E se por acaso, for bom demais. É porque valeu. É porque valeu. É porque valeu”.

Meu pai foi, sobretudo, um apaixonado pela vida. Soube viver de uma maneira muito própria até onde deu. Um homem forte, inquieto, que não se acomodou em nenhum momento. Mesmo com sérios problemas de saúde ainda tinha planos para o “futuro”. Agora percebo que ele era um ser evoluído, à frente do seu tempo e querido por todos. Alguém que realmente faz falta.

Sempre nos dizem que a vida é assim mesmo. Que as pessoas morrem e ponto final. Mas não estamos tão evoluídos ao ponto de aceitar, com paz e tranquilidade, o desaparecimento de pessoas queridas, tão importantes para o nosso equilíbrio. Por isso que a arte, seja ela música, literatura ou outras, é muito mais do que simples entretenimento. É transcendental. E faz imortal quem a gente ama. Principalmente a música, que tem esse poder incrível de reativar nossas lembranças. Lembro claramente uma das vezes que ele esteve na minha casa e pediu para colocar o DVD novo de Ney (Atentos aos Sinais). Como a gente estava se preparando para sair ele colocou na última música do álbum, Ex-amor, de Martinho da Vila, e chorou bastante na ocasião. Fiquei confuso na hora, sem entender o motivo dele ter chorado logo naquela música que Ney canta tão “para cima”, em alto astral. Mas depois, lendo a letra, entendi claramente. “Como um louco eu até sorri. Mas no fundo só eu sei, das angústias que senti. Sempre sonhamos com o mais eterno amor. Infelizmente,eu lamento, mas não deu…Nos desgastamos, transformando tudo em dor. Mas mesmo assim eu acredito que valeu. Quando a saudade bate forte, é envolvente……”. Que sensibilidade meu pai tinha. Ele já estava percebendo que em pouco tempo iria se transformar apenas em saudade.

Agora que meu pai saiu de cena, que as cortinas se fecharam definitivamente para ele, só restam as  memórias, os bons momentos da nossa história e as canções. Ele sempre disse que dava uma saudade danada quando acabava o show de Ney e tinha que ir embora. Sensação que compartilho igualmente. Eu só não sabia que o sentimento de saudade pudesse ser tão grande um dia, como a que estou sentido nesse momento. Dói o fato de tudo ter acabado tão rápido, como uma música que encerra no melhor momento, naquela hora que estamos empolgados.

“Eu hoje tive um pesadelo e levantei atento, a tempo. Eu acordei com medo e procurei no escuro alguém com o seu carinho, e lembrei de um tempo. Porque o passado me traz uma lembrança, do tempo que eu era criança. E o medo era motivo de choro, desculpa pra um abraço ou um consolo”. E foi praticamente dessa forma, como na poesia de Cazuza, que eu acordei no pior dia da minha vida, depois de um pesadelo (ou premonição), onde painho já não estaria entre nós. Liguei para o celular dele e ouvi, pela última vez, sua voz cansada e triste. Encerrei a ligação dizendo. “Fica com Deus”. E o destino resolveu acabar com a tristeza e o sofrimento dele. “De repente, a gente vê que perdeu, ou está, perdendo alguma coisa. Morna e ingênua, que vai ficando no caminho. Que é escuro e frio, mas também bonito, porque é iluminado. Pela beleza do que aconteceu há minutos atrás”. E todos nós, principalmente eu e minha mãe, víamos, ou percebíamos, que meu pai estava ficando pelo caminho. E assim foi.”Vida louca vida, vida breve. Já que eu não posso te levar, quero que você me leve”.

Literatura e música. Música e literatura. Duas artes que se completam de forma quase sobrenatural para mim. Sem meu pai agora, dificilmente daria para seguir em frente sem o auxílio grandioso dessas duas paixões que a vida me deu. E também da minha filha Valentina, minha esposa Karla e, lógico, minha mãe. Sem elas a vida não iria fazer o menor sentido daqui para a frente.

Se existe algum conforto é a certeza de que meu pai tinha realmente que ir embora, para um lugar iluminado, que eu torço de todo o coração que exista de verdade. Aliás, o coração que falhou quando ele mais precisava, o mesmo coração que fez pulsar tanta alegria de viver, o mesmo coração triste dos últimos dias. Mas o mesmo coração que o fez amar tanto as coisas da vida. O filho, a esposa, a neta, os irmãos, os amigos e o ídolo.  Se a cortina do palco dos sonhos teimou em se fechar de maneira abrupta para meu pai, ele pode agora ficar tranquilo, porque conseguiu se tornar imortal. Ele está em cada música que gostava, nos lugares arborizados que achava tão lindo na cidade e na praia de Boa Viagem, onde passava devagar com os vidros do táxi abertos, para contemplar a beleza do mar. Meu pai está ainda nos quatro cantos do Recife, que ele tinha tanto orgulho de conhecer como a palma da própria mão. Mas ele vive, sobretudo, nos pensamentos de todos que tiveram a honra de conhecê-lo.

“É tão estranho. Os bons morrem jovens. Dias assim, dias de chuva, dia de sol. E o que sinto não sei dizer. Vai com os anjos, vai em paz. Não é sempre mas eu sei, que você está bem agora. Só que neste ano eu sei que o verão acabou cedo demais”, como bem traduziu Renato Russo. No final tudo é energia, luz, lembrança e amor. Que ficam presentes em cada livro que amamos, ou nas músicas que fazem, ou fizeram, parte da nossa vida. Mas o amor, repito, é o maior legado que alguém pode deixar. E ele deixou esse amor em cada um de nós.

Agora entendo perfeitamente o motivo do meu pai ter gostado tanto da música Balada do Louco. Eu fecho os olhos agora e posso até ouvi-lo cantando essa canção, com o sorriso largo que tinha, como se o refrão fosse um tipo de mantra da sua própria existência. “Mas louco é quem me diz, e não é feliz, eu sou feliz”. E ele foi feliz, apesar de tudo.

Ney Tropical e Banda
Ney Tropical e Banda
3 thoughts on “Pela beleza do que aconteceu há minutos atrás”
  1. Bela homenagem Ney, parabéns pelo texto. Vc foi muito iluminado descrevendo com tanta maestria, o amor fraterno seu para com o pai, e passando pra gente algumas peculiaridades raras de um fã para com um ídolo da estirpe do Ney Matogrosso. Também sou fã desse cantor, mas, seu pai mostrou que quando se é fã de verdade, não basta ter só CD’s como eu, tem que ter o arrepio da emoção e o sonho conquistado, como deu para perceber na sua narrativa. Que Deus o tenha e o abençoe.

  2. Lindas palavras relatando a historia e a trajetoria de seu pai, entendo o que vc tenta passar em cada linha sobre o amor do seu pai pelo Ney. Sou um pouco mais nova do q seu pai pelo relato quando secos & molhados explodiu eu tinha 9 anos, e realmente foi uma loucura tudo aquilo, crescemos vendo e aprendendo com o Ney que não queriamos para nós aquele mundo que se apresentava todo controlado nao podiamos ser um robozinho na mão de algumas pessoas…queriamos mais, liberdade para viver liberdade para escolhas, Ney sempre nos passou isso.
    Seu pai devia ter sede de vida, encontrava inspiração nas musicas do Ney, deveria ter seu jeito proprio de vida, para cada momento uma cançao que embalasse e que traduzia o momento em que estava vivendo…. Bem enfim deixa parar por aqui pq quando a gente começa falar do Ney a gente se empolaga, mas de uma coisa tenho certeza sendo de onde estiver ele deve ter um orgulho imenso de voce, pois aprendeu a lição que seu pai passava e com tanta emoção e amor vive e transmite a todos….Felicidades e Parabens linda cronica

  3. Belíssimas palavras, descreveu e me fez compreeender um pouco mais a respeito do nosso querido NEY, agora, as conversar, as atitudes que ele tinha realmente se encaixaram, “um artista” até nos últimos momentos. Imagino que não foi fácil porém ficou perfeito.
    Um abraço querido.

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