Anna Muylaert // 2017 // foto Rafael Roncato

Por Ney Anderson

Bem antes de ficar conhecida do grande público produzindo filmes como Durval Discos e Que horas ela volta?, entre outros trabalhos, a diretora e roteirista Anna Muylaert já se aventurava pelo mundo da escrita. Em 1988 ela publicou o livro de poemas Vai! Alguns anos depois, já na década de 1990, produziu contos que permaneceram inéditos até hoje.

Quando o sangue sobe à cabeça, publicado em edição caprichada pela editora Lote 42, apresenta seis narrativas protagonizadas por mulheres. São histórias que pendem para o trágico. No primeiro conto, “O segredo de Célia”, é sobre uma personagem com medo de ter contraído Aids. Algo muito presente na década que se passa a história. O conto seguinte, “O Pulo do Gato”, é o tocante texto que apresenta uma senhora que se despede do apartamento, das amigas e do Rio de Janeiro (onde mora), porque está de mudança para a casa da filha em São Paulo, por conta da sua idade avançada. O encerramento deste conto não é menos do que espetacular.

O terceiro conto, “A origem dos bebês segundo Kiki Cavalcanti”, crianças precoces dominam a narrativa. Nele, uma professora não sabe lidar com a turma de alunos impossíveis. Já no conto homônimo que dá título ao livro, “Quando o sague sobe à cabeça”, a autora explora muito bem a pluralidade das personagens e das cenas. Indo e voltando em vários ambientes da residência, como uma câmera flutuando sem cortes, criando um jogo de espelhos de uma tradicional família brasileira, que tem as suas peculiaridades. O marido, a esposa, a empregada, a filha adolescente, as amigas da filha, o avô idoso e com problemas de saúde, além de duas mortes, movimentam essa história das relações humanas. Esse conto, inclusive, virou um curta-metragem.

“Mas, a cada cômodo que entrava, a cada porta que cruzava, sua tristeza parecia aumentar até o ponto em que pensou em se jogar da janela do décimo segundo andar”

Em “Procurando pelo em ovo”, o leitor acompanha o vai e vem em um salão de depilação, onde o tragicômico serve de base. A rotina de uma depiladora no salão de beleza com as clientes que não poupam nas conversas sobre a intimidade delas mesmas e, claro, nas fofocas das mais variadas possíveis. O salão, espécie de consultório de psicólogo, é palco para as mais diversas situações. Quase todas envolvendo o relacionamento entre as clientes e os companheiros. As conversas descambam sempre para outras situações, recheadas de ironias. Esse conto tem um desfecho à Nelson Rodrigues.

Foto: João Grijo

O último conto, “Padecendo no paraíso”, o poder de observação em primeiro plano é muito bem trabalhado para mostrar a ansiedade de uma grávida até o nascimento do bebê. Uma mulher que está não apenas ansiosa pela chegada do filho, mas preocupada com o estado do próprio corpo por conta da gravidez.

Os textos de Mulayert trafegam sempre na esteira do comum, sem artificialidades, onde as personagens estão em contextos de vida e de situações naturais a qualquer uma. No entanto, ao aproximar o seu olhar de escritora, de criadora, percebe detalhes que engrandecem as histórias, com elevado apuro de linguagem e técnica literária. Como os conflitos entre um casal com décadas de relacionamento, os desentendimentos habituais que o tempo de união provoca, envolvendo todo o núcleo familiar.

“Eu tinha consciência de que não tinha muita experiência na área e, ao mesmo tempo, não queria fazer qualquer coisa. Eu não queria ser uma diretora que fizesse qualquer tipo de filme. Queria ter um estilo próprio, que me desse norte não apenas para um primeiro filme, mas também para todos os que viriam depois. Mas como eu poderia saber qual seria esse estilo se eu nunca havia feito um filme? Me debati um tempo com essa questão e, então, decidi escrever uma série de contos. Pensei que, se escrevesse vários contos, naturalmente eu exercitaria a minha capacidade criativa e, possivelmente, começaria a entender quais temas eram mais naturais a mim e como eu os abordaria. Resolvi escrever essa série de contos sobre mulheres. O que começa aqui continua sendo tecido e desvendado até hoje. De certa forma, Quando o sangue sobe à cabeça é um filme que nunca foi visto. Ou um livro que nunca deixou de querer ser lido”, diz Anna Muylaert.

“Apesar do sucesso do jantar, contemplar-se no espelho fez com que ela novamente sentisse vontade de chorar”

Em um mesmo conto deste livro existem histórias paralelas, com eixos dramáticos diferentes, que se completam no final. A intenção é mostrar os pontos de vista das personagens. E funciona muito bem. As situações vão se embaralhando até atingir o ápice. Sempre com a mulher em primeiro plano. Universo bem montado pela autora. São mulheres fortes, de atitude, em situações totalmente distintas. Algumas já com o empoderamento presentes no DNA e outras frágeis demais, medrosas e dramáticas.

Irecema tinha trepado exatamente com trinta e dois homens. Desde o colegial vinha experimentando arquitetos, jornalistas , músicos, dentistas. De quase todos, ela guardou boas lembranças, mas orgasmo não teve com nenhum“.

Nada pode ser mais feminino do que menstruar, engravidar e entrar na menopausa. E a autora consegue mostrar essas questões em poucas linhas, no incrível poder de síntese. Mesmo com todo o arco dramático, encerra de forma natural, embora rápida, mas nunca de forma abrupta, impondo uma dicção muito particular para cada uma das personagens. Conforme as situações avançam, de camada em camada, os enredos partem para outras direções. Quase sempre sem final feliz.

Os pequenos traumas representam todas as figuras femininas de Quando o sangue sobe à cabeça. Os pensamentos delas tornam os contos ainda mais densos e únicos. As mulheres criadas por Anna Mulayrte são reais, andando em cordas sempre bambas, lutando por objetivos distintos. É como se a autora reforçasse o ditado que diz que de perto ninguém é normal. É interessante acompanhar o desenvolvimento dessas figuras femininas, pois não são meros fantoches sem vida. Existe um sentido para cada uma delas.

Ao final da leitura, é possível perceber que a autora calibrou com precisão o seu olhar para mostrar o rico mundo cru cotidiano de seres tão complexos. E por isso mesmo, digno dos melhores enredos. 

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