Crédito: Marcinha Lima

Por Ney Anderson

Já nos primeiros momentos do romance Porco de Raça (Darkside), de Bruno Ribeiro, nos deparamos com o personagem principal fugindo de uma prostituta e um cafetão brutamontes que estão em busca do pagamento pela madrugada amorosa dele com a mulher. Já nesse início é perceptível que a história não vai dar sossego nenhum ao leitor. É o que se confirma nas páginas seguintes, com a sucessão de atropelos que o protagonista passa no Rio de Janeiro, até entrar em uma espiral de situações grotescas.

Durante a fuga, ele vai até a casa do irmão pedir ajuda para ir a João Pessoa, cidade natal dele, para tentar se livrar da perseguição e também de outros problemas. A relação dos dois, no entanto, não é das melhores, por conta da questão da identidade racial. Os irmãos são negros, mas se compreendem de formas distintas, então esse conflito sempre rondou o convívio entre eles.

Enquanto que o personagem central é professor e tem uma visão de mundo progressista, o irmão é um político inescrupuloso. O conflito, aliás, não é só com o irmão, mas com os pais, que sempre desprezaram a própria identidade (sobretudo o pai falecido), em detrimento da aceitação que eles conseguem, principalmente o irmão, que não por acaso se torna político governista.

Lá está meu irmão, tomando café da manhã enquanto escuta Vivaldi. Ele me acena com a cabeça raspada, olhos esbugalhados, pele mais negra que a minha e um rosto danificado por tarja preta.

Logo na saída da casa do irmão, ele é confundido com um padre e é sequestrado por uma comunidade fanática-religiosa para tentar tirar o demônio do corpo de uma adolescente, a filha do líder espiritual. Aliás, a igreja católica já não é maioria. Na verdade, está relegado quase ao anonimato desde que o grupo fascista tomou conta da política nacional. Ele consegue fugir, mas é sequestrado novamente quando estava embarcando no ônibus para a Paraíba,  tentando ir também se reconciliar com a ex-mulher.

Dessa vez o professor acorda em um ringue na argentina, mascarado, já tendo que se defender dos ataques do oponente, também de aparência desconhecida do público. Tudo acontece muito rápido nas dez páginas iniciais do romance, a partir de uma sucessão de problemas que cercam o protagonista, e assim continua até o contundente desfecho.

O professor (que recebe o codinome de Porco Sucio para justificar a máscara que ele usa nos combates) passa muitos anos lutando e se torna um dos principais competidores das lutas sanguinárias onde a única regra é tentar sair vivo. A partir daí, o tempo para ele perde o sentido, já que a rotina se resume às lutas. Quando não está em combate fica preso em um quarto de hotel, impossibilitado de sair. O homem segue apenas lutando, matando, sobrevivendo. O local para onde ele é levado em Buenos Aires tem o sugestivo nome de Açougue. É insano. Os lutadores nunca têm o rosto revelado. Isso, inclusive, pode render uma grave punição aos competidores. As lutas, por conta da alta violência, são transmitidas pela deep web.

“E quem há de dizer que, neste ringue ou fora dele, há diferença? Quem há de dizer que minha vida não era a mesma coisa que estou vivendo aqui?”

O professor começa a entender que ali, naquele ringue, é alguém admirado, mesmo que por gente ensandecida. Luta após luta o homem vai se tornando outro, deixando para trás quem era, se transformando em algo totalmente diferente. Esse duplo, no entanto, sempre esteve enterrado dentro de si mesmo, sendo aflorado ali, no limite da sobrevivência. “O adversário se afasta, eu me levanto. Não consigo falar direito, porém me esforço: “”Tô acostumado. Os fracos aguentam apanhar; os fortes, não””.

O enredo mostra pessoas ricas que apostam nessas lutas clandestinas, recheado por imagens poderosas, tendo a ideia do UFC como base, sexo e comida farta para os lutadores, regados ao som de Carlos Gardel e Piazzola. Nunca se sabe quem está por trás desse espetáculo dos horrores. Já os lutadores são pessoas que estão às margens de tudo. No limite do que é ser cidadão, alguém minimamente aceito,  ou um pária.

No mesmo canto, prisão domiciliar, sem janelas, vazio, analgésicos diariamente, tédio.

As camadas que o autor vai criando capítulo após capítulo aumentam gradativamente o grotesco e o insano da história. A forma como Bruno também insere elementos surreais passam uma verdade incontestável pela qualidade de convencimento. Apesar do estranhamento das situações, porque não soa falso ou forçado apenas para criar um clima, pois caminha exatamente na linha do mais puro real, submergindo aqui e ali no assombro, na ilusão da mente. “O motorista não tinha olhos. Ignorei este fato”.

Obviamente, não é um livro inteiramente vertiginoso. Existem os momentos de contemplação do protagonista pelo passado, quando ainda existia uma vida inteira pela frente. Essa persona vai sendo construída aos poucos, com a fatia importante do passado familiar do professor apresentada. A digressão não serve apenas para enxertar elementos soltos na história, mas para preencher de sentido o que o protagonista sente e o lugar que entende ocupar no mundo para dar conta do presente no qual está (forçadamente) metido. Então, o pregresso familiar é muito importante na obra. Elementos de racismo estrutural estão presentes em cada linha, ainda que não didaticamente.

Principalmente na questão do “embranquecimento” que o pai e o irmão passaram a adotar e defender para se enquadrarem na sociedade e conseguirem privilégios e aceitação. No meio desse balaio todo surge esse novo individuo, o lutador, o Porco Sucio. Um até então perdedor, (na visão das pessoas ao redor dele) que todos passam a amar e admirar. Existe, claro, forte tom de vazio existencial na alma do protagonista, porque ele é alguém que, paradoxalmente (e literalmente), perde a identidade que tanto buscou afirmar. Ele se torna um duplo bestial, devorando a si mesmo para se transformar (e sobreviver) na outra criatura. Esse monstro talvez estivesse sempre escondido nele mesmo, que submergiu (viveu) como forma de sobrevivência.

Os ricões gostaram de mim, a imagem do porto preto, magricela, fracassado, professor, é um perfil que eles amam: o adorável perdedor.

A história vai se sobrepondo, o protagonista perdendo a noção do tempo, a vida dele resumida àquele presente. A ideia de futuro maculada por algo que ele não entende, pois foi jogado lá dentro do açougue. E o leitor fica se perguntando a todo instante qual será o final daquilo tudo?

Narrado em primeira pessoa, Bruno Ribeiro utiliza um fraseado que dá conta da loucura toda, , muitas vezes num fluxo de consciência desesperado na tentativa de compreensão por tudo o que está passando. Quem ele é de verdade depois da frustração da vida sem grandes vitórias, se pergunta o professor. Uma maneira narrativa atraente de contar essa história. Por vezes parece tudo um grande delírio. Essa marca, aliás, sempre esteve presente nas narrativas do autor. A cadência dos pensamentos do protagonista fica ainda mais eclipsado a medida que os dias passam naquele local que ele não sabe exatamente onde é, muito menos o objetivo daquilo tudo em se meteu. E o principal: até quando?

É impossível não destacar o ótimo trabalho gráfico da Darkside e as ilustrações potentes de Wagner Willian que ajudam bastante a compor a atmosfera brutal, sangrenta, insana, agressiva, trágica e verborrágica das 179 páginas do romance. O livro foi o ganhador na categoria Romance/Conto da primeira edição do Prêmio Machado DarkSide.

Bastante visual, quase um filme impresso, Porco de Raça é uma história sem igual, com a espetacularização da violência sem limites, um reality show dos horrores, sobre um personagem condenado à sobrevivência.

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