Foto: divulgação

Por Ney Anderson

Histórias de terror quase sempre descambam para os diversos clichês que o gênero tem a oferecer. O principal deles, claro, é a opção pelo susto fácil. O segundo clichê é fazer com que o leitor acredite vorazmente em fantasmas, forçando aparições abruptas de entidades do outro mundo nos textos.  André Balaio trabalha justamente na contramão dessa fórmula no livro de contos Quebranto (Patuá). Ele oferece ao leitor possibilidades, propõe caminhos, joga o espectador para caminhos distintos através da aparente simplicidade narrativa.

É impossível não lembrar do clássico Histórias Extraordinárias, do Edgar Alan Poe. Mas os contos do Quebranto vão por outros caminhos. Se em Poe o leitor já sabe desde a primeira linha se tratar de conteúdo puramente de terror, André faz justamente o contrário. Em nenhum dos textos fica claro no início o objetivo por trás dos enredos aparentemente comuns. Isso porque ele trabalha com uma técnica já bastante usada, mas que só alguns bons prosadores sabem fazer de forma correta, que é a de conduzir o leitor por uma suposta normalidade, contando algo por vezes simples, histórias “banais”, para de uma forma sutil e eficiente fazer a reviravolta, pegando o leitor de surpresa e deixando-o sem fôlego  até o desfecho. Tudo embalado com leves toques que o gênero permite, sem fazer disso uma regra na construção das tramas.

São pequenas armadilhas jogadas traiçoeiramente pelo caminho causando pequenos assombros até nos mais incrédulos. Não são os sustos seguidos dos gritos histéricos dos filmes de Hitchcock, muito menos as narrativas de terror mais pesadas dos livros de Stephen King do começo da carreira do autor americano. Mas o medo do desconhecido em sua mais alta complexidade, por conta do componente humano, com personagens bem construídos, passando a sensação de “real” por trás dessas histórias de ficção. O racional e o irracional, o explicável e o inexplicável, o visível e o invisível, a dúvida e a certeza andando de mãos dadas.

Nos 13 contos de Quebranto nada é entregue de bandeja. O sobrenatural, ou o insólito, como o autor mesmo diz sobre este livro, vai sendo pulverizado homeopaticamente. No conto O lado de lá o vizinho marca um encontro secreto com a mulher do melhor amigo, mas morre antes disso acontecer. No entanto, a mulher não deixa de receber a sua visita. Em Noite cega um rapaz vai deixar a amiga num ponto de ônibus tarde da noite. Na volta ele conhece uma atriz que lhe faz o inusitado convite para ensaiar uma peça com alguns amigos que está próxima da estreia. Olhos azuis é uma nova perspectiva para a lenda do lobisomem, criado (nesse caso) depois de um experimento científico. No conto que intitula o livro, um fazendeiro saudável fica doente de repente, por conta de algum feitiço lançado sobre ele. Perto de casa é a história do filho que ouve a voz da mãe na cozinha logo depois dela ter sido assassinada. Terra úmida apresenta o caso de necrofilia envolvendo uma paixão doentia de um homem que viola o cadáver da amada, tendo uma verdadeira surpresa na consumação do ato.

Restinga é o relato de uma vingança macabra da esposa abandonada. O resto é silêncio é um dos melhores textos. Conta a história do filho que precisa retornar do exterior para o velório do pai, morto durante uma briga de trânsito, e precisa substituí-lo na empresa que mantinha em sociedade com o amigo de longas datas. Aos poucos o rapaz vai tendo a revelação sobre o real motivo da morte do pai, não como a mãe havia lhe falado. Mas o melhor mesmo ficou para o final no conto Branco. Impactante e bem construída, a narrativa lida com a recusa em acreditar, no princípio, no que os próprios olhos estão vendo, mesmo que a revelação seja mais forte do que qualquer ideia de incredulidade.

Esse não é um livro de terror clássico. O sobrenatural é utilizado de forma singela, mas muito eficaz no seu objetivo. Quebranto é quase um livro de lendas urbanas. Tem a mulher no espelho; o lobisomem; a mulher fantasma; a noiva cadáver e demais seres incomuns. É um livro muito próximo do clássico Assombrações do Recife Velho, do escritor Gilberto Freyre, especialmente por esse ser um tema já trabalhado por André Balaio em vários quadrinhos e projetos com as lendas da capital pernambucana, que rende até hoje passeios noturnos por pontos assombrados e famosos da cidade.

“O corpo no chão de azulejo frio se contorcia e girava de um lado para o outro em solavancos, as pálpebras retraídas, os olhos virados para o teto. Maria avançou com os dois braços à frente, levanta, amiga, levanta. Foi quando viu no espelho uma mulher loira, magra, de cabelos escorridos e pele amarelenta cheia de pústulas com chumaços de algodão sujos de sangue nas narinas para os quais apontava implorando: tire, tire. Maria fugiu pelo corredor. Na secretaria, andou em círculos com as mãos no rosto entre soluços, berrando, retorcida em desespero. Cuspiu a notícia como um afogado expele água suja. Ligaram para a emergência, mas era tarde. O silêncio cobriu o lugar.  As aulas foram suspensas. Os alunos, liberados. Poucos voltaram à tarde para o velório na capela”. 

No final das contas, saímos do Quebranto acreditando que a ficção, se bem trabalhada, pode causar efeitos sobrenaturais e arrepios genuínos em quem lê. Os contos são cheios de pontos de tensão, dentro de uma narrativa leve, com a linguagem sendo a ponte para a evocação de imagens fortes de horror e medo. O leitor compreende, no entanto, que tudo é ficção, onde os fantasmas podem ser meras alegorias dos perigos do mundo real. Mas ninguém em sã consciência vai querer provar o contrário depois da leitura deste livro.

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