Foto: Marcinha Lima

Por Ney Anderson

Febre de Enxofre (Penalux), de Bruno Ribeiro, retrata a vida de Yuri Quirino, um jovem poeta que foi finalista de um dos maiores prêmios do país com o livro Poetas não morrem com tiro de doze, elevando o seu nome ao status máximo da poesia urbana marginal. Depois disso, ele entra numa onda depressiva, porque não consegue mais produzir e a sua única base emocional, a namorada Luciana, está saindo de Campina Grande para o Rio de Janeiro estudar. O poeta depende financeiramente do pai, que lhe cobra a todo momento que ele arrume um emprego e dê um jeito na sua vida de uma vez por todas. “Sei que você é poeta, filho, ele diz, sei que você ganhou prêmios, mas porra, vai trabalhar, cacete”. Yuri é alguém que destila veneno para todos os lados, porque se acha incompreendido, principalmente por ter escolhido a poesia para expressar os seus pensamentos, mas afirmando que os poetas são pessoas que vivem de empréstimo.

É no aeroporto, quando vai se despedir da namorada, que Yuri conhece Manuel di Paula, um argentino que lhe faz uma proposta para que o poeta escreva a sua biografia. O homem é uma figura estranha, de modos peculiares, mas que oferece uma boa quantia em dinheiro pela escrita do livro. Para isso, Yuri precisa se mudar para Buenos Aires, terra natal do biografado. No primeiro momento o pedido é recusado, mas a insistência é tão grande, com Manuel di Paula seguindo os seus passos por onde quer que ele vá, que Yuri acaba aceitando. Ele vê nessa proposta uma forma de se redimir perante todos, porque julga ser um artista incompreendido, e a biografia pode mudar os rumos da sua própria vida.

Antes do projeto ser iniciado, o poeta é apresentado como alguém realmente marginalizado ou de espírito marginal. Frequenta puteiros, usa vários tipos de drogas, tenta ensinar poesia para duas travestis e flerta com o suicídio, ao mesmo tempo que morre de saudades da namorada e não aguenta mais depender financeiramente do pai. Ele também não é adepto das panelas literárias. “Um escritor não pode ser amigo de outro escritor, isso é o equivalente a criar uma víbora no pescoço”. Essas situações são apenas alguns elementos dentro de uma espiral maior, porque Yuri vive por (e para) a sua arte, mesmo que essa luta não seja tão simples de ser travada. É nesse misto de sentimentos que ele se muda para a capital argentina como única alternativa possível para a sua sobrevivência física, moral e intelectual.

Manuel di Paula é uma criatura muito próxima da figura famosa do vampiro, nunca revelado totalmente, mas não se restringe ao clichê que o mito possa evocar. Além disso, é também DJ underground, mora numa mansão que se movimenta, rodeado por várias mulheres-zumbis e se alimenta do sangue de cordão umbilical. Yuri, então, começa a escrever a biografia encomendada, investigando todos os detalhes da peculiar vida do cliente, que compreende alguns séculos. Nesse momento o texto passa a assumir um caráter de rascunho. Depois de um tempo vivendo no casarão Yuri começa a ser um outro e a trama vai revelando aos poucos o mistério principal, sendo misturada dentro de uma única e poderosa fusão.

O livro vai sendo construído numa sequência inverossímil de cenas, porque tudo é bastante delirante. É como se o biógrafo estivesse com febre (a febre do título) e sua mente confusa ditasse toda a obra. Algumas referências surgem, como o nome da residência em ruínas do DJ, conhecida como a Mansão Tomada, uma ligação direta ao conto A Casa Tomada, de Cortázar. Tudo no livro é estranho, como o narrador-biógrafo mesmo fala em determinado momento. “Mas o que é verossímil nesta história?”. O texto mostra a insanidade e a loucura das situações, em passagens totalmente desconexas da realidade, por meio de uma verborragia sem fim. Na medida que a biografia avança, o estado mental do poeta vai decaindo, entrando numa onda de perturbação. “Quanto mais escrevo sua história, mas perturbado ando ficando”.

O estilo da prosa de Bruno Ribeiro é absolutamente interessante. Embora trate de um poeta celebrado, mas que não deixa de ser um fracassado, por não conseguir sobreviver da arte que produz (algo que já foi tratado à exaustão na literatura), a literatura do autor traz um frescor muito próprio. Justamente pela opção de mostrar a história por um viés sujo, visceral e totalmente delirante. “O bom escritor é um criminoso. Escrever é como tentar afiar uma faca com os dentes, a arma pode ser amolada, mas será inevitável não deflorar a gengiva no percurso”.

Febre de Enxofre é muito bem escrito, com elementos pop, construído através de uma sucessão de imagens e pensamentos que seguem um fluxo contínuo de perturbação, dentro de uma narrativa pulverizada e desconectada do mundo real. Yuri relata os acontecimentos do passado (dele e também de Manuel), mas sem identificar qual tempo é esse, porque a narrativa transita na linha atemporal. O poeta parece estar em delírio constante. A ficção fica suspensa entre o grotesco das imaginações do poeta, o terror psicológico e as lembranças melancólicas da sua vida cotidiana. O texto é embaralhado, causando um efeito claustrofóbico, de que não existe saída. Até o próprio Bruno Ribeiro é personagem da obra.

É verdade que por volta da página 231 o livro perde um pouco a força do início, se arrastando para tentar segurar a história que já está contada. E também alguns cacoetes ortográficos experimentais, que enchem as páginas de interrogações invertidas, mas que na verdade estão ali para enlouquecer mais ainda a narrativa. “Nada melhor do que transformar a própria linguagem em uma narrativa invasora, não?” O leitor é arrastado para dentro da loucura do personagem, com cenas criativas, como a do protagonista sendo arrastado para um poço. Um verdadeiro labirinto confuso e aterrorizante.

Bruno Ribeiro (ou Yuri Quirino) põe o leitor numa desconfiança permanente, por conta da narrativa delirante, que deixa qualquer um confuso, sem saber se o que se passa realmente está acontecendo ou é fruto de algum evento desconhecido. É um texto intenso, difícil, mas que faz qualquer um entrar e não querer (não conseguir) sair. É o tipo de livro com vários tipos de leitura, porque é uma narrativa aberta, com possibilidades infinitas de interpretação, não restrito apenas em uma ideia. Febre de Enxofre é um romance insano, como insana deve ser toda prosa que retrate um poeta marginal.

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