Por Ney Anderson

O cineasta italiano Roberto Rossellini, diretor de obras como Roma, cidade aberta e Paisá, veio ao Brasil 1958 com a ideia de transformar em filme o livro Geografia da Fome, do pernambucano Josué de Castro. Ele desembarcou primeiro no Rio de Janeiro, sendo recepcionado por Josué, que àquela ocasião era Deputado Federal. Depois de passar alguns dias em terras cariocas, Rossellini vai até o Recife para conhecer o cenário para as futuras locações. Chegando na capital pernambucana é recepcionado por alguns nomes de destaque no cenário local, da cultura, política e imprensa, que lhe apresentam o que existe de melhor em termos culinários e também mundanos.

No Recife ele é levado para se divertir na pensão de Arcângela, mais conhecida como dona Bombom, na Rua do Rangel. Lá ele é apresentado às irmãs Passarinho. Duas belas mulheres que despertam o interesse dos frequentadores por conta da elegância e discrição das moças. Essa é a ideia central do romance Rossellini amou a pensão dona Bombom, do escritor Cícero Belmar, que une a narrativa jornalística com a ficcional.

Lançado originalmente em 2015, o livro ganhou dois prêmios: o Lucilo Varejão, do Conselho Municipal de Cultura do Recife e o Vânia Souto de Carvalho, da Academia Pernambucana de Letras. Agora está sendo relançado com novo projeto gráfico.

A mistura de realidade e fantasia é muito bem amarrada no texto de Belmar. Rossellini é apresentado como uma verdadeira lenda do cinema, chegando ao Brasil com toda a pompa, cercado por repórteres ávidos por informações sobre o filme que ele iria fazer. As matérias e notas dos jornais vão mostrando o ilustre personagem aos poucos, elevando a importância dele página a página. Primeiro com o desembarque no Rio de Janeiro, onde ele fica hospedado no hotel Copacabana Palace. Depois com a ida dele ao Recife, sendo recepcionado por intelectuais pernambucanos.

“Ali estava uma personagem interessante para qualquer cineasta: a ex-prostituta e a atual dona de casa de raparigas era íntima dos orixás do candomblé, os deuses da religião negra brasileira. Uma mulher que, segundo os seus acompanhantes, fazia questão de arranjar casamentos para as prostitutas que trabalhavam para ela. Com certeza, a programação que mais o entusiasmou no Recife até aquele instante”

O leitor passa a entender o valor do diretor para a sétima arte. Rossellini conhece a atmosfera do Recife, os costumes e a maneira de ser do povo. E chega à conclusão que é uma cidade prosaica, por conta da rotina das pessoas e do próprio desenho arquitetônico, cortado por pontes e rios, com pescadores tirando o sustento das águas.

Uma das várias cenas interessantes do romance é quando o cineasta anda pelo centro da capital e para na Avenida Guararapes com Josué de Castro para tomar um café. O visitante vai ao encontro do pintor Lula Cardoso Ayres, conhecido por pinturas de vários estilos, entre elas, desenhos geométricos e também de temas regionais, ressaltando a identidade cultural do Nordeste, e obras abstracionistas. Depois vai conhecer Gilberto Freyre, na residência do sociólogo, no bucólico bairro de Apipucos, onde é servido pelo autor de Casa-Grande e Senzala o famoso conhaque de pitanga, produzido pelo próprio Freyre. A certa altura Rossellini pensa: “como vou filmar a fome, se até agora só fui apresentado à banquetes”.

A entrada do sociólogo Gilberto Freyre na trama dá um sabor especial à história, porque ele era uma espécie de desafeto de Josué de Castro, além de ter escrito também um livro famoso no exterior.

Beco do Marroquim, década de 1950, esquina com a Rua do Rangel, por onde existia uma saída alternativa da pensão de dona Bombom

Enquanto o cineasta conhece o Recife, a rotina de Arcângela se desenrola em capítulos paralelos, com ela na expectativa da chegada de alguém famoso, como disse uma vidente. Arcângela é personagem muito forte, a figura central da obra. Mesmo sendo ex-prostituta e a dona do bordel, ela mantém integridade e respeito. Junto com as irmãs Passarinho, formam uma trinca imbatível. Porque oferecem um serviço diferenciado.

Rua do Rangel atualmente

Rossellini, então com 61 anos, tem fama de sedutor por ser ex-marido de Ingrid Bergman, uma das mulheres mais cobiçadas do seu tempo. Ele, no entanto, chega no bordel, se diverte e vai embora, sem dona Bombom se dar conta de que ele era a figura ilustre que entraria na sua pensão.

O cineasta volta para a Europa dias depois, prometendo fazer o filme que nunca se realizou de fato. O livro é dividido em três partes, com vinte e nove capítulos. E é conduzido por muitas vozes, recordações de personagens reais e fictícios, que viveram a história relatada. Essa técnica ajuda a dar veracidade ao que está sendo narrado. Entre essas figuras estão o poeta e jornalista Carlos Pena Filho, o designer Aloísio Magalhães, o professor Liêdo Maranhão, o arquiteto Abel Acioly, o já citado Di Cavalcanti e a cantora Marlene (no momento que a história acontece no Rio), entre muitos outros, que se divertiam em bares e boates icônicos, como a Chantecler, Moulin Rouge, Duas Américas e Tony’s Drink.

Mas o romance não é apenas sobre a visita de Rossellini à pensão e sobre a (não) adaptação cinematográfica do livro de Josué. Ele é um coadjuvante de luxo. Tanto que só entra na pensão nos momentos finais do livro. A verdadeira protagonista mesmo é dona Bombom. A partir dela, acompanhamos um delicioso passeio pela cidade que ficou no passado, da boêmia recifense no final dos anos 1950, e a Era de Ouro do Bairro do Recife (hoje Recife Antigo), com as casas de prostituição que faziam parte da rotina e do cenário da época. Frequentado por homens de todos os níveis sociais, incluindo militares e trabalhadores do porto, e dos marinheiros que vinham em navios de várias partes do país e do mundo.

Entendemos a história do Recife nesse período de uma forma muito límpida, com a culinária nordestina sendo uma espécie de antagonista. Na ocasião que se desenrola o enredo, Recife era uma cidade portuária. As vidas dos trabalhadores do porto se misturavam com os programas nas casas de prostituição, numa época que a Capital Federal era o Rio de Janeiro e Brasília ainda em construção, a TV em fase de popularização e a Bossa Nova era um movimento em ascensão.

Arcângela é uma pessoa solitária, suas memórias remetem à momentos anteriores, amores antigos, de períodos de guerra. É um livro feito de lembranças. Ela resolve fazer uma festa de despedida do bordel em alto estilo, em um local elegante, que serve também para homenagear Oxum, a santa que ela venera. Existem, inclusive, muitos símbolos do candomblé, já que dona Bombom é adepta da religião.

Rossellini amou a pensão de dona Bombom é como uma maravilhosa cápsula do tempo, onde nós somos os viajantes privilegiados.

A seguir, confira a entrevista exclusiva com o escritor.


“Recife foi minha universidade da vida” , Cícero Belmar

Como surgiu o interesse de escrever um romance sobre este tema?

Eu sempre quis escrever algo, não sabia se seria um romance, uma crônica, um conto longo, sobre a prostituição na chamada zona do meretrício do Recife dos anos 1950. Para mim sempre foi uma coisa muito curiosa porque o final dessa década coincide com os tais anos dourados na região Sudeste, e em Brasília, por exemplo. Eu me perguntava, como era o Recife desses anos dourados? Será que teve anos dourados? Recife já era uma metrópole, mas muito conservadora. Era uma cidade que tinha hora de funcionamento. Ligava e desligava. Às 21h, depois da última sessão do São Luiz, o centro ficava vazio. Tudo parava. O glamour, se é que havia glamour, estava no Bairro do Recife.

Quanto tempo durou a pesquisa histórica para escrever o livro?

Dois meses, se muito. Esse foi o período em que fiquei indo diariamente para o arquivo público para ler jornais da época. Mas, quando comecei a escrever o romance, de vez em quando, eu ia de novo no arquivo público para tirar dúvidas ou complementar umas coisinhas. Não demorei muito tempo escrevendo este livro. Ao todo, quase um ano. Pois eu escrevi e, no final, o reescrevi, como sempre faço, aumentando aqui, cortando ali.

Seus personagens são muitos reais. Ajudou a experiência como jornalista para dar esse tom verossímil à narrativa?

Resposta – Sim, foi uma época em que eu estava lendo Gay Talese, Tom Wolfe e John Hersey, jornalistas norte-americanos que escreveram romances e longas reportagens romanceadas. Em seus livros, com textos jornalísticos, eles valorizam demais o detalhe das cenas, dos personagens. São os detalhes que dão essa sensação de realismo, de realidade. E eu percebi isso, queria imitar essa tendência na reportagem. Esses autores que citei são os mestres do new journalism, um jornalismo mais narrativo, mais literário. De certa forma, tem a ver com esse meu romance. Não que quisesse me igualar a esses escritores fantásticos, mas eu exercitei uma coisa que aprendi lendo eles. A diferença é que o new journalism é só jornalismo.

O enredo tem como base um filme que seria feito pelo cineasta, sobre o livro de Josué de Castro. Mas acabou não acontecendo. O seu romance também iria virar filme. O projeto, no entanto, não foi para frente. O que houve para ter acontecido essa coincidência?

O romance, quando foi parar nas mãos de Amin Steple e Paulo Caldas, virou um excelente roteiro, que ganhou duas ou três versões. Cada uma mais genial que a outra. Esses roteiros participaram de concursos e receberam dois prêmios. Um dos prêmios permitiu a Paulo Caldas viajar para Roma, onde ele esteve em contato com os dirigentes da Fundação Roberto Rossellini. Meses depois, o presidente da fundação esteve no Recife para um acordo de cavalheiros. E é como você diz, uma coincidência, o filme não rolou.

Rossellini amou a pensão de dona Bombom tem um texto muito fluido. A construção do livro te demandou muito trabalho de carpintaria?

Apesar do pouco tempo que eu consumi na escrita, cerca de um ano, eu me dediquei de corpo e alma ao romance. Virou obsessão. Sumi do mapa. Mas, também, me diverti muito. Nessa época eu era repórter de jornal e estava exercitando, no dia a dia, essa coisa da fluidez do texto, de dar uma forma mais literária, uma linguagem diferente, valorizando a descrição das imagens no texto. Como disse anteriormente, eu estava querendo copiar o que achava legal naqueles mestres do new journalism. É uma estratégia para se trazer o leitor do jornal para mais perto do texto.

O livro é uma mistura de jornalismo com ficção. Essa ideia existia desde o começo, em unir as duas linguagens para a condução da narrativa?

Tenho duas respostas para esta pergunta. A primeira nasceu na própria pesquisa. Eu constatei que Rossellini veio gravar Geografia da Fome, de Josué de Castro, mas depois da viagem ao Recife, retornou à Europa e arquivou o projeto. Ninguém sabe a razão. Ninguém tem explicação. Então eu pensei: eu tenho que inventar uma explicação. Só a ficção teria uma resposta. Nesse ponto, ela começou a se enroscar com a realidade. Num passo seguinte, vendo filmes de Rossellini, eu percebi que ele misturava ficção com realidade em suas obras, que ele misturava pessoas comuns a atores. E que isso era neo-realismo. Então, decidi: o livro vai ser neo-realista.

Os títulos dos capítulos deixam supor o simulacro da criação. A linha tênue entre realidade e ficção. Fica mais evidente quando com a mistura no livro com a narrativa jornalística. Partindo dessa ideia, toda a história, seja ela real ou não, é uma suposição?

É muito difícil definir o que é a realidade objetiva. Eu termino sendo tentado a dizer que ela é apenas uma narrativa do que achamos que aconteceu. Ou que é apenas uma versão da própria realidade. Para ser mais simples, se eu me deparar com um fato, poderei ver coisas que outra pessoa não virá. Assim como essa pessoa poderá ver detalhes que me passarão despercebidos. E qual de nós estará certo? Os dois estaríamos certos. No caso do jornalismo, que tem compromisso com a verdade, mesmo assim ela não é “a” realidade. Ele será sempre uma versão que o jornalista contará da realidade. A gente se aproxima do real, mas não o vive. Tudo é simulacro. A ficção, ao contrário do “fato real”, é assumidamente simulacro.

Em determinado momento, uma das personagens diz que só lhe restam as palavras para falar do passado. E ainda assim elas não são capazes de contar como foi, verdadeiramente, o passado. O passado, para você, ao menos na sua ficção, é satisfatório?

Sim, porque a ficção pressupõe um pacto que fazemos, primeiramemte, conosco. E, em segundo lugar, com o leitor. Em relação ao autor consigo mesmo, é como disse Fernando Pessoa, trata-se de uma pacto porque ele finge que é dor a dor que deveras sente. Já em relação ao leitor, o pacto se dá nos seguintes termos: eu juro que digo a verdade (e descrevo como se fosse) e o leitor jura que acredita (e reage como se fosse real). No final, nós nos divertimos por isso mesmo.

Rossellini visitou mesmo a casa de dona Bombom (existiu esse lugar?) ou tudo não passa de fantasia criativa?

Existiu e Rossellini esteve no bar de dona Bombom, que ficava numa travessa da Rua do Rangel, centro do Recife, do jeito que eu descrevi. Mas a dona Bombom da ficção não é igual à proprietária do bar, que não cheguei a conhecer. Nem imagino como ela era.

Roberto Rossellini é o papa do neo-realismo. Que compreende uma forma de narrar a realidade com toques artísticos. A sua obra, ao menos uma parte dela, parte deste mesmo princípio?

Sim, foi uma tentativa de fazer um texto literário com a mesma ideologia.

Existe a máxima no Recife (que pode ser estendido para o estado como um todo) que tudo é maior e melhor. Um filme baseado no livro de um pernambucano, sendo feito por um diretor de cinema estrangeiro consagrado, é um dos mitos que ajudam a reforçar a megalomania local?

É isso mesmo. Nós, pernambucanos, achamos que tudo desta terra é superlativo. Mas o fato é que Josué de Castro era conhecidíssimo no exterior por causa do seu livro Geografia da Fome. Intelectuais do mundo inteiro leram Josué naquela época. Ele propôs uma teoria avançada, sobre a política da fome, numa Europa recém saída da guerra. Destroçada e miserável. Empolgada com o existencialismo.

O romance é muito carregado de memória, através de um recorte, digamos, histórico. Você está trabalhando em algum outro texto que tenha um personagem que fez parte do recife de outra época?

Não exatamente. Mas, acabei de escrever um livro de contos que tem a ver com memória. Com a necessidade de lembramos, com o direito de esquecermos. Um livro que tem histórias com as doenças da memória, essas coisas.

Escrever este livro te reaproximou de uma cidade que existe apenas no passado, talvez no seu inconsciente?

Foi uma declaração de amor ao Recife que, à parte a questão da prostituição, me parecia mais humanizado. O Recife é lindo.

Criativamente, como matéria-prima da ficção, como você vê os personagens que transitam por esta metrópole?

O Recife tem uma essência literária. É uma cidade que inspira história e que pedem para ser contadas. Se você frequenta a casa de amigos, pode pegar excelentes histórias do interior, pois esta é uma cidade que acolheu muitos imigrantes. Há gente do interior em todo canto do Recife. Por outro lado, se você vai ao centro da cidade e se dá ao trabalho de observar a fauna que transita pelas ruas, começará a ver e ouvir muitas histórias. Algumas já chegam prontas, pedindo apenas e urgentemente um narrador.

O livro é claramente uma grande homenagem ao Recife. O que a cidade despertou (e desperta), e representa, no Belmar jovem, recém-chegado do sertão, e no Belmar de hoje?

Recife foi minha universidade da vida. Aqui, aprendi tudo. No começo, é uma cidade difícil, para quem chega com sonhos ingênuos e românticos. Mas, depois, a gente se vicia nela, como se fosse uma amante exigente e indiscreta. É uma cidade de muito sol, realista ao extremo, onde tudo parece sólido e profundo. Mas, só parece. A gente ama e odeia. Tem momentos que eu digo que quero morrer aqui. Que eu não aguento ficar longe do Recife. E em outro instante planejo ir embora para bem longe, digo que não aguento o seu rojão. Que quero abandoná-la. Mas, se um dia o cavalo de Quixote passar, e eu estiver na vibe de Sancho, disparo atrás dos meus moinhos de vento para nunca mais voltar!

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