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Por Ney Anderson

Cristovão Tezza é um grande nome da literatura brasileira contemporânea, que trabalha com um conceito maior de obra literária. Basta ler sua vasta produção que se percebe uma preocupação genuína com a criação artística. O livro que elevou seu nome ao patamar de ídolo foi o romance O filho eterno, ganhador de quase todos os grandes prêmios nacionais. Mas Tezza não é uma espécie de best-seller, os livros que lança não estão nas listas dos mais vendidos, muito menos existe um frisson quando uma nova obra é lançada. Ele é um autor para poucos, de que gosta verdadeiramente do trabalho estilístico da linguagem antes de tudo, até da história propriamente dita.  Mas as histórias nos livros de Tezza, lógico, existem, são interessantes e verdadeiras. Funcionam sob um cuidadoso jogo de palavras exatas, que nunca sobram. É assim que acontece na Suavidade do vento, livro de 1991, que foi republicado pela editora Record no começo do ano numa edição totalmente revista. Portanto, pode-se dizer que o livro é novo, pois como o próprio autor indica, vários cacoetes dos anos 80 e 90 foram retirados, e também alguns vícios de linguagem que ficariam datadas nos dias de hoje.

É curiosa a maneira como Tezza fala sobre literatura nos seus livros, pois sempre existe um personagem escritor, geralmente em crise com alguma coisa. E aí entra a análise sobre essa condição. Na verdade parece que a maior preocupação do autor é realmente entender, e mostrar, essa questão da literatura na vida das pessoas (e do próprio escritor), ou querer responder qual a real importância que a arte tem no cotidiano, e as contradições que ela nos impõe. Não é diferente na Suavidade do Vento, que apresenta J. Matozo, um professor de português que leciona numa cidade do interior do sul do país, divisa com o Paraguai, precisamente em 1971, auge da ditadura militar. O professor tem uma vida bastante metódica, ensina na rede municipal, bebe com os poucos amigos no bar próximo de casa e joga partidas de dados. A única coisa que o “diferencia” é o fato de estar escrevendo um livro, com o mesmo título do romance de Tezza, já há algum tempo. É esse livro, no entanto, que o mantém lúcido, a coisa mais importante para ele nos últimos anos.

Não é um romance com grandes reviravoltas, o leitor vai acompanhando a vidinha sem graça do protagonista, que muda em raríssimas exceções. Matozo não é desses personagens que admiramos de cara, mas conseguimos sentir a mesma angústia que ele sente, as dificuldades em se encontrar com ele mesmo, e até de se entender, se achando medíocre, mesmo sendo um criador. O leitor vai acompanhando essa vida seca, sem graça, até o dia que o professor resolve bancar a publicação do romance. Justamente nesse ponto que o livro começa a ficar carregado de metalinguagem, onde as agruras do personagem-escritor são bastante próximas da realidade. É possível entender nesse romance o que se passa na cabeça de um jovem autor, que espera conquistar o mundo logo no primeiro livro. O curioso é a constatação do escritor pela falta de interesse das pessoas ao trabalho que tomou tanto tempo da sua vida, produzindo aquele livro que ele diz ser ele próprio.

A vida de Matozo é literária em todos os sentidos. Ele vive num pequeno quarto alugado, passa o tempo entre a escrita do livro, bebendo uísque e ouvindo um disco de Pink Floyd, que diz muito sobre o clima angustiante do texto. O livro de Matozo pode até ser o livro de Tezza, já que as poucas dicas sobre o romance do professor nos aproxima da obra “real” que estamos nas mãos, de uma maneira diferente, nesse campo tão explorado da metaliteratura. O livro todo é uma grande reflexão sobre o ato de escrever ficção. Onde o lado artístico de alguém não importa de fato, apenas para o próprio criador.  “Que importância tinha A suavidade do vento na urgência do mundo? Por que tanto detalhe, tanta demora? Ninguém vai ler isso aí! Ninguém!”. O personagem, como se percebe, acredita fortemente que a literatura não serve para nada, mas não consegue parar de escrever, porque aquilo é muito mais que simples entretenimento. Ele precisa daquelas palavras para continuar vivendo. “Seria mais exato dizer que Matozo refugiou-se na suavidade do vento”, como sugere o narrador.

O personagem se movimenta, aliás, sob o comando de uma voz narrativa oculta e onisciente, que nunca é revelada quem é. “Nosso amigo é dessas pessoas que detestam o próprio nome – não são tão raras assim”. Mas não apenas essa voz, outras compõe o romance, principalmente a voz interior, e conflituosa, de Matozo. “Um trabalho que só existe porque ele, Matozo, existe; um trabalho que é ele”. E algumas pistas sobre o que é o livro, como nesse comentário de Estevão, amigo do protagonista: “Eu sei que é o monólogo de alguém que vai morrer, não sou idiota”. Ou então em outra parte do livro: “Mattoso conta a história de um home/mulher que vai morrer”, como um Ivan Ilitch moderno. “J. Mattoso não narra, nem descreve. É o corte poético que dá o tom do seu texto numa estrutura circular”. O conflito interno, inclusive, é perceptivo até na grafia do nome do professor, que em determinados momentos é escritor Matozo, Matosso ou Matozzo. É um trabalho cuidadoso de Tezza, nos mínimos detalhes, que pode passar despercebido pelo leitor desatento.

O Livro é dividido como uma peça de teatro: primeiro ato, entreato, segundo ato e cortina. Aumentando a tensão em cada uma das etapas. É um livro que vai decifrando pouco a pouco quem é na verdade esse misterioso homem, mas que nunca sabemos completamente. “A lentidão deliberada, cigarro a cigarro, com que ele passava a limpo aquelas páginas ocultava o temor de termina-las, quando teria de voltar às exigências concretas do cotidiano, cruamente, sem válvula de escape. Porque não lhe ocorria mais nada para escrever!”. E poucos aspectos físicos do professor, que apenas corrobora com a imagem que fazemos dele. “O professor é um homem magro – de fato, seco, de uma secura esticada, se vocês entendem -, mas come bem. Bem e rápido: come olhando o jornal, como quem considera o ato de comer uma perda de tempo. Há pessoas assim”. Existem ainda algumas ideias pertinentes e válidas na criação literária, como a questão da verossimilhança: “escreva sobre o que você sente. É isso, só isso, que faz a literatura. O resto é chatice”.  Não deixa de ser uma alegoria da própria existência do escritor, seja ele iniciante ou não.

No geral, A suavidade do vento é um bom livro, que pretende mostrar, e consegue, as contradições do escritor brasileiro, na maioria das vezes tímido, que não trabalha para produzir best-seller, mas algo que possa permanecer para além das festas de lançamento. Uma obra essencial para a sua vida, que mostre o seu pensamento da melhor, e mais particular, forma possível. Cristovão Tezza prova com este romance que é possível também encontrar novos olhares, leitores atentos e críticos que entendam, cada um dá sua maneira, aquele livro que tem nas mãos. Revelando ainda que uma obra nunca é, de fato, de quem o criou, mas do mundo, que pode ser gentil e cruel na mesma medida.