Por Ney Anderson

É praticamente inevitável que desastres naturais, atentados e um sem fim de situações que coloquem o ser humano no epicentro da crise não sirvam como matéria-prima para trabalhos artísticos dos mais variados. Com a pandemia do coronavírus não está sendo diferente. Uma prova disso é o romance Ana de Corona, da escritora Gisele Mirabai, publicado exclusivamente na Amazon.

A autora coloca no centro do enredo a personagem Ana, jornalista que está às voltas com uma tese de mestrado sobre a Amazônia, tendo que lidar com um casamento em vias de separação, os trabalhos freelancers para uma grande empresa petrolífera que pretende ser vista como amiga do meio ambiente, e ainda os cuidados com a filha. Além do caso extraconjugal que ela mantém há alguns meses. Até que ela se contamina ainda no começo da epidemia e tem a vida virada do avesso, tal qual acontece agora com as pessoas. Com imagens singelas, mas bastante poderosas, o leitor acompanha no começo do romance como a contaminação acontece de forma bem simples e rápida.

“Sobrecarregada pelo excesso de atividades, conseguiu negociar na escola para a filha chegar mais cedo e tem de dez ao meio-dia para escrever sua pesquisa. Sabe que é pouco tempo e hoje especialmente a concentração demora a surgir, sente-se aérea e distraída. Abre a janela em frente à mesa para ver se o ar lhe traz alguma inspiração. O vento sopra na direção de Ana. Nessa mesma hora, o vizinho de cima que sempre teve hábitos estranhos e escatológicos, vai até a janela e espirra feito um dragão. Milhões de gotículas se espalham no ar e caem dois metros à frente, no jardim do prédio. Algumas partículas mais leves, no formato de aerossóis, flutuam na fina flor do ar que Ana inspira e vão parar dentro do seu apartamento. Mais precisamente em seu sistema respiratório. Nesse exato momento, Ana se contamina”.

Nas mais de cem páginas da obra o leitor vai entendendo a pandemia de uma forma quase sensorial, trabalhada para encaixar bem na ficção. E a aniquilação que ela pode representar para a humanidade caso as medidas dos especialistas não sejam seguidas à risca. É assustadora a forma que a narradora expõe o quanto é perigoso e inteligente o vírus. Mostrando o passo a passo dele no corpo humano, ludibriando as células, digno das melhores cenas produzidas pela ficção científica.

“Não fosse a célula que, enganada, abre o seu ser para que ele multiplique seu poder, ele nem sequer existiria.Com seu melhor exército, o corpo então passa a produzir proteínas e a combater o inimigo. O sistema imune avisa, temos problemas, e talvez aqui apareça a primeira dor de garganta. Mas os destruidores da mata respiratória se camuflam com fardas verdes e continuam sua descida perigosa em direção às vias aéreas inferiores. Pelo longo tubo da traqueia, entram nas árvores dos brônquios que levam aos pulmões. É quando o corpo começa a tossir e cumpre uma das etapas que ele mais gosta: sair do hospedeiro em forma de gotículas e se espalhar entre as pessoas. Na luta para vencer, a resposta inflamatória aumenta e a febre aparece. O corpo sente fadiga, mal-estar e perda de apetite, afinal, quem pensa em comida no meio de um combate? Aqui é o ponto de virada entre o que pode determinar a vida ou a morte”.

A obra olha de forma ampla para o problema, falando, inclusive, sobre a economia por um viés quase didático. Quando o todo poderoso mercado pede ajuda ao Estado, mesmo se achando invencível. E também sobre as ações de um governante sem escrúpulos. Muitas questões são colocadas no enredo, como os ecos da escravidão que a pandemia escancara a partir das situações de vulnerabilidade social que os mais pobres precisam enfrentar para não virarem apenas números na sombria estatística das mortes. A derrocada do indivíduo enquanto pertencente a uma sociedade dita organizada, mas que na realidade mostra toda a sua face cruel e em ruínas.

O leitor acompanha a escalada da contaminação em meio à troca de acusações entre EUA e China, as fake news e teorias da conspiração, a relação das pessoas com o mundo virtual, com o seu próprio mundo individual, por vezes deixado de lado em detrimento das urgências impostas pela contemporaneidade. A fé, e a falta dela, dos que acham que tudo não passa de histeria. E por isso mesmo acabam se tornando vítimas da própria ignorância. A violência contra a mulher no ambiente doméstico. Entre outros assuntos que estão vindo à tona por conta da pandemia no mundo globalizado, totalmente conectado, que escancara a fragilidade e as mazelas do ser. As mortes que viram números crescentes dia após dia.

As imagens que a autora consegue produzir através de uma narradora onisciente, fazendo o paralelo entre as questões de hoje e de séculos passados, são muito pertinentes. Os capítulos onde o planeta Terra e o vírus são os narradores, merecem atenção à parte. A carga emotiva que a autora construiu dentro da atmosfera da incerteza, é de fato tocante.

A forma como Gisele coloca o relacionamento da protagonista no centro da trama, junto com as várias reflexões da narradora, tornam o romance ainda mais consistente e interessante. Os conflitos pessoais da protagonista ajudam a narrativa avançar. Este fator humano é o grande trunfo da obra. Porque Ana representa todos os indivíduos que estão passando pelos mesmos conflitos dela. Sobretudo isolamento social, a angústia, a dúvida, medo da morte e a insegurança com o amanhã.

Embora fale de um tema verdadeiro e que está em curso, ainda longe de solução, o livro da Gisele Mirabai se trata de ficção. É um texto que não para, dentro de uma dinâmica vertiginosa, com a escalada vertiginosa dos acontecimentos página após página, fazendo com que o leitor não consiga deixar o livro de lado. Alguns capítulos são narrados como uma espécie de delírio, provocado pelo choque de realidade de um mundo pós-apocalíptico, com as cicatrizes transformando para sempre os habitantes deste planeta eternamente agredido pela raça humana. Mas que sempre cobrou o seu preço. De uma forma ou de outra. Mirabai não propõe a resolução cartesiana dos conflitos enfrentado pelo mundo atual, mas a reflexão poderosa sobre o que está se desenrolando. Muito mais do que tentar responder como será daqui para frente, Ana de Corona estabelece o seu papel de caminhar junto com o problema e tentar imaginar qual simulacro de vida restará.

“Com o fechamento das fronteiras e cada presidente a fazer o que bem entender, a era global de união pelo vírus que atinge a todos, torna-se também a era da separação. Ao tempo em que a humanidade se percebe como uma rede, observa também como o longo período de relativa paz desde as duas grandes guerras do século XX pode estar prestes a chegar ao fim. Os cenários chegam aos poucos. Hospitais lotados, caixões empilhados, valas abertas. Pelas ruas, os figurinos também se revelam, pessoas de máscaras feitas com restos de tecidos e meias velhas, já que as fechaduras das lojas estão trancadas, sem previsão de serem reabertas. Para o banquete dos mais abastecidos, talvez a marca do vinho ou a textura da carne já não sejam tão importantes. Todos guardam em si a lembrança iconográfica de uma guerra, mesmo que não a tenham vivido. Levam consigo a imagem de uma antiga família ocidental ao redor de uma mesa vazia, com crianças de suspensórios e calças curtas, de cabeça baixa e o rosto abatido.Na trilha sonora, os bombardeios de antigamente são substituídos pelo som das ambulâncias que levam os infectados plugados em respiradores”. Ana de Corona – Gisele Mirabai

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