Crédito: Renato Parada

 

Por Ney Anderson

Salvar o Fogo, novo romance de Itamar Vieira Júnior, já começa de forma perturbadora, quando um fato marcante sela o destino da protagonista Luzia aos pés do Rio Paraguaçu. É um livro de cenas fortes e misteriosas, com um estilo de linguagem em ritmo avançado. Salvar o Fogo traz uma narrativa que começa de dentro para fora, onde a introspecção dos personagens vai sugerindo ações ao longo das situações e conflitos, criando cenas de horror, por vezes chocantes, de estranha beleza literária.

Dividido em quatro partes, o enredo é focado principalmente na relação entre os irmãos Moisés e Luzia. Ela sempre enigmática, vista na primeira parte a partir das percepções do irmão. Mostrando, sobretudo, a vida na Tapera, as dificuldades em sobreviver com tão pouco e o trabalho do pai no roçado, além dos serviços de Luzia na igreja que domina toda a cidade. Essa é uma narrativa que parte de algum ponto futuro. Os narradores já estão deslocados no tempo e espaço, talvez relembrando os acontecimentos, através de pulos temporais.

O autor utiliza um fraseado sutil, que não entrega de imediato o que ele quer mostrar, apenas faz o que a boa literatura, àquela escrita com zelo, precisa alcançar: transformar palavras em imagens na cabeça do leitor. Tanto Luzia quanto Moisés vão tentando encontrar o próprio rumo, entender os caminhos da vida, ambos guardam um desejo reprimido de vingança por acontecimentos na Tapera, principalmente por conta da mão pesada dos padres nos habitantes daquela região.

O livro é narrado sob alguns pontos de vista, como ele já havia feito anteriormente em Torto Arado, para apresentar a histórias com diversas perspectivas, a vida de cada um dos irmãos longe da Tapera. Itamar tem um entendimento forte sobre a construção dos personagens, fazendo-os caminhar por si só. Eles têm passado e história, muito antes até do que está sendo contando a partir da primeira página. É o tipo de texto que já vem carregado de outra época.

O incrível pensamento de Luzia surge em muitas vozes em segundos. Em segunda pessoa em alguns momentos. Família cheia de segredos desvelados aos poucos. E a comunidade cheia de conflitos dominada pela igreja. Tem algo muito forte do sobrenatural, místico, de mistérios que se apossam do corpo e da alma da protagonista, de maneira sutil. É um livro de muitas camadas e crenças. A ancestralidade, obviamente, é algo bastante presente nessa história, sendo revelado, aos poucos, evidenciando os diversos seres que moram dentro dessa mulher.

Os personagens carregam um misto de revolta, dor, esperança e desemparo. Mulheres que morrem e o mal que surge nas atitudes cotidianas. Esse é um livro permeado por lembranças, a maioria sofridas. A metáfora do fogo é muito significativa e simbólica no enredo. O que pode destruir, também pode salvar.

Salvar o Fogo apresenta visões, ancestralidade, entendimento do mundo e do que representa o presente, com a personagem compreendendo a si mesma e o seu povo. O rio dos ancestrais é algo realmente forte e presente durante a narrativa. Ressaltado ainda mais na pele preta, indígena, ancestral. Tudo faz parte do que ela é. Ela consegue descobrir mais sobre si depois de visões, vê os horrores das vidas passadas e a herança que ela carrega, justamente a memória. O seu destino, portanto, é a luta entranhada em sua essência. Fogo que é destruição, mas também representa a vida e a luta.

São vozes entranhadas nos personagens e nela mesma, trazendo uma ideia de pertencimento em algo maior. Não por acaso, Tapera do Paraguaçu é o lugar por onde passaram os mais remotos ancestrais, então, Salvar o Fogo é um romance composto por vários ecos e diversas concepções de mundo. No emaranhado de sentimentos dos personagens que se entendem como pertencentes daquele mesmo lugar, mesmo alguns deles estando longe da sua terra natal, os rios que se cruzam no emaranhado de histórias, desaguando sempre no Paraguaçu.

Os narradores vão contando a história de maneira direta e cronológica. Luzia é um espírito atormentado, dentro da terra disputada, o animal que lhe devorou os anos. Sofre da humilhação dos despossuídos. A terra da cor vermelha não é um acaso, fortalecida por revelações espirituais. É a metáfora do fogo que consome, e preenche, de diversas formas.

A memória e a história de gerações se conectando com a terra. É sutil no desenrolar quando tem que ser. E enérgico quando a narrativa pede mais movimento. Itamar sabe utilizar as técnicas de maneira a não demonstrar a arquitetura da escrita. As engrenagens narrativas giram de forma continuada, alimentando, página a página, o desenvolvimento da trama, sem que o fio original da história se perca.

Itamar Viera Júnior entrega uma bela história. Não são simples fraseados bem construídos, eles têm alma e dor. Difícil não se apegar aos personagens, tão humanos, tão reais, tão maltratados pelas circunstancias (pela história). Mais ainda sim guerreiros, que não se deixam abater, apesar de todos os pesares.

O Rio Paraguaçu ditando o ritmo de uma ancestralidade corroída por desalentos, pavor e, principalmente e combate pela própria terra. Geração após geração, em uma guerra sem fim em busca da existência.

Salvar o fogo não se encerra após a última página, ele continua existindo. É o fogo que representa a passagem para o eterno recomeço.

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